Existencialismus: Alegria Breve

ALEGRIA BREVE
VERGÍLIO FERREIRA
(1965)
«Falava baixo, horizontalmente, como uma fita de som, movendo os lábios brevissimamente. Mas agora os dedos das mãos mexiam também, devagar, com um movimento lento e túrbido de cobras de água. É o seu modo de ser importante — pensei; porque só se é importante cultivando uma diferença.»
«Ganharei o jogo? Perco sempre. Porque tentar ainda? Ganhar uma vez. Uma vez só. Às vezes penso: ganhar uma vez e não jogar mais. Esqueceria as derrotas, a memória do homem é curta. E no entanto... Começo a sentir-me bem, perdendo. Quer dizer: começo a não sentir-me mal.»
«Bem sei. Os anos são altos, envelhecemos subindo e a sabedoria é isso, ver distante mesmo o mais perto: o franzir dos olhos dos velhos, quando nos fitam ao pé, como se estivéssemos longe, como se fôssemos estranhos...»
«Quebrou-se o espelho — foi bom? Para que quero eu um espelho? O espelho é o maior palco da vida, representamos nele o que queremos que vejam em nós.»
«Mas tudo vai do começar: o amor, o ódio, o choro, a ternura, o medo. E quando caímos nisso, o que nos sustenta não é o objecto do sentimento. Porque o objecto é um pretexto, e o sentimento é o prazer de nós próprios, que não somos pretextos — será assim? Oh, que importa? As «ideias» são murros um pouco mais civilizados — e tu estás velho e estás só, já não podes esmurrar ninguém.»
« — Às vezes, diz-se: foi da religião que nos veio a vergonha do sexo e é por isso que o sexo tem que ver com a religião. Não foi nada. Temos vergonha ou terror mas é do excesso que vive nele, porque o Absoluto aterra. A dinvidade está em nós. Mas a dinvidade pesa.»
« — Tudo o que é vivo é escandaloso
porque a morte é o estado normal do homem,
— quero dizer; vulgar.
Nados-mortos, vivos-mortos, mortos-mortos.
— É o seu estado mormal.»
Arcádia, 1973
(Obras de Vergílio Ferreira)
(lido em 1995; 2025)