Existencialismus: Até ao Fim


ATÉ AO FIM
VERGÍLIO FERREIRA
(1987)

Que horas são? a manhã vem já aí. Ardem-me os olhos de vigília, o corpo cansado. À porta da capela, fica num alto junto ao mar. À porta da capela, olho à volta o horizonte nocturno, olho o céu cheio de estrelas. Está uma noite tranquila de inocência, como a paz que me invade. Poderia achar razões que me turbassem a paz. Não encontro. Tudo aconteceu fora do meu alcance, não encontro. Um pouco de sono talvez, de fadiga, que horas são? Há em todo o céu lá no cimo um pouco de claridade que não é das estrelas. E há uma certa agitação invisível, um profundo estremecer do mundo que vai acordar. E sempre o ressoar das águas, mas tenho de prestar atenção. Longe, no limite do mar, pequenas luzes de barcos na pesca. Estremecem devagar como se cintilassem na sua luz mortal. É um cintilar já breve na claridade que vem aí. Estou parado à porta da capela, há um terreno à frente e depois a queda a pique para as águas. Passei a noite sozinho, fui homem. Quero dizer fui perfeito. Não é que eu tivesse muito a conversar com o meu filho, que dorme ali no caixão. Mas o que houvesse a dizer era só entre os dois. 
— Esqueces-te de que veio muita gente à conversa.
— Não muita. De todo o modo, entre os dois. 
Porque, quem mais com direito neste diálogo contigo? Havia um mundo a decidir apenas entre nós. 
— Estava já decidido, tudo o mais foi palavreado um mundo a decidir e tudo o mais era circunstância como num frente-a-frente político. E quanto ao palavreado, decerto, mas tínhamos de nos explicar. Aliás, daqui a umas horas vêm buscar-te e acabou-se a conversa. Estou um pouco desejoso disso, apesar de tudo. Uma noite de vigília cansa e não há razão nenhuma que se aguente com sono. E estou ansioso pelo sol, pelo mar diurno, o mar aberto de claridade. Talvez por um pouco de pesca, talvez por um pouco de banho, vai estar um dia quente. De toda a maneira, a purificação, o restabelecimento da plenitude, o estar inteiro para mim. Com todo o meu ser lavado e renascido. Sem pesadelos, angústias, sem manchas de sangue.
 Avanço um pouco no terreno em frente da capela. Há um pequeno muro branco a toda a volta, até ao limite do perigo. Alveja na obscuridade do amanhecer, o muro. Na ponta da enseada há um farol. De vez em quando o facho varre o ar, um cone de poalha luminosa, como um olho brilhante bate-me súbito na cara, roda para o lado oposto. Tem o tique maníaco da repetição, roda vagaroso pelo lado de lá, de súbito bate-me na cara, passa. Sento-me no murete, fumo. E em baixo o mar, sempre. Do lado de lá da capela estende-se uma estrada para a praia, não passa ninguém. Uma trança de espuma a todo o correr da areia, vejo-a, tem na obscuridade uma alvura de leite. E o rumor do oceano. Profundo e vasto na vastidão do amanhecer. Mundo do início, tudo vai começar de novo pela primeira vez estarei eu preparado? — Cláudio! 
— Diz. Vê se acabas a merda do cigarro, tenho coisas a dizer-te. 
Cláudio sou eu. Não sou pai, possivelmente não sou, chama-me pelo nome, muitas vezes o fez. Como se instaurado de facto no início primeiro. Como se nenhum elo de ligação. Não me aborreço. Como se num começo verdadeiro. Mas não vou ainda. Tenho ainda o cigarro, na boca um pouco de estrumeira. Sabe-me mal, levei a noite a fumar. Olho distraído as lâmpadas da estrada que passa atrás da capela. Têm uma luz mortiça, de sono. Para o alto sobe uma pequena colina com casas dispersas. Vejo-as, pálidas, a acordar também para a manhã. Algumas têm uma lâmpada de esquina. Possivelmente da iluminação pública. Ou iluminarão o quintal e ficaram acesas por descuido. E em todas se abre um halo da neblina que vem do mar. Para baixo, na descida da estrada, há mais casas rentes à praia. Dormem plácidas o sono da manhã. São belas, no seu alheamento, irmanadas à minha quietação. 

Bertrand, 1996
(Obras de Vergílio Ferreira)
(lido em 1995)