Existencialismus: Com a Morte na Alma

COM A MORTE NA ALMA
(Os Caminhos da Liberdade #3)
JEAN-PAUL SARTRE
(1949)
Nova Iorque, nove horas da manhã, sábado, 15 de Junho de 1940.
Um polvo? Pegou na faca, abriu os olhos, era um sonho. Não. O polvo estava lá, sugava-o com as ventosas: o calor. Suava. Tinha adormecido cerca da uma hora; às duas, o calor havia-o acordado, mergulhara num banho frio e tornara-se a deitar sem se limpar; logo em seguida a forja voltara a ressoar-lhe sob a pele, recomeçara a transpirar. De madrugada tinha adormecido, sonhou com incêndios; agora o Sol já ia alto, e Gomez suava ainda: suava sem interrupção há quarenta e oito horas. «Meu Deus! », suspirava ao passar a mão pelo peito molhado. Isto não era do calor, era uma doença da atmosfera: o ar tinha febre, o ar suava, desfazia-se em suor. Levantar-se. Começar a suar dentro de uma camisa. Erguer-se: «Hombre! Já não tenho mais camisas.» Encharcara a última, a azul, porque era obrigado a mudar-se duas vezes por dia. Agora era o fim: usaria este trapo húmido e mal-cheiroso até que a roupa viesse da lavandaria. Levantou-se cautelosamente, mas sem poder evitar a inundação, as gotas corriam-lhe pelo corpo como piolhos e faziam-lhe cócegas. A camisa amarrotada, cheia de pregas, estava no espaldar da cadeira. Apalpou-a: nada seca neste país de merda. O coração batia-lhe, sentia um travo na boca, como se se tivesse embriagado na véspera.
Vestiu as calças, aproximou-se da janela e correu as cortinas: na rua, a luminosidade era branca como uma catástrofe; mais treze horas de luz. Olhou para a rua com angústia e raiva. A mesma catástrofe: lá longe, na fértil terra negra, debaixo de fumo, sangue e gritos; aqui, entre as casinhas de tijolo vermelho, luz, apenas luz, apenas luz e transpiração Mas era a mesma catástrofe. Dois negros passaram e riram, uma mulher entrou no drugstore. «Meu Deus!» Via as cores tornarem-se berrantes: mesmo tendo tempo, mesmo tendo cabeça para isso, como poderia pintar com esta luminosidade! «Meu Deus!», disse, «meu Deus!»
Bateram à porta. Gomez foi abrir. Era Ritchie.
— É um crime — disse Ritchie ao entrar.
Gomez estremeceu:
— O quê?
— Este calor: é um crime. O quê — acrescentou com um ar de censura —, não estás vestido? Ramon espera-nos às dez horas.
Gomez encolheu os ombros:
— Adormeci tarde.
Ritchie olhou-o a sorrir, e Gomez apressou-se a acrescentar:
— Está muito calor. Não consigo dormir.
— Acontece, nos primeiros tempos — disse Ritchie complacentemente. — Depois habituas-te. — Olhou para ele atentamente. Tomas pastilhas de sal?
— Sim, claro, mas não fazem efeito.
Ritchie abanou a cabeça e a sua benevolência matizou-se de severidade: as pastilhas de sal deviam impedir a transpiração. Se não produziam efeito em Gomez, então ele não era como as outras pessoas.
— Mas então! — disse subitamente Ritchie, franzindo o sobrolho —, tu devias estar treinado: em Espanha também há muito calor.
Gomez pensou nas manhãs secas e trágicas de Madrid, nessa bela luminosidade sobre Alcalá, que era ainda a esperança; abanou a cabeça:
— Não era o mesmo calor.
— Menos húmido, não? disse Ritchie, com uma espécie de orgulho.
— Sim. E mais humano.
Ritchie tinha um jornal na mão; Gomez estendeu o braço para lhe pegar, mas não ousou. A mão pendeu-lhe.
— É um grande dia — disse Ritchie alegremente —: a festa de Delaware. Sou de lá, sabes?
Abriu o jornal na décima terceira página; Gomez viu uma fotografia. La Guardia cumprimentava um homem forte e ambos sorriam com naturalidade.
— Este tipo à esquerda — continuou Ritchie — é o governador de Delaware. La Guardia recebeu-o ontem no World Hall. Foi formidável.
Gomez tinha vontade de lhe arrancar o jornal e de ver a primeira página. Mas pensou: «Estou-me nas tintas», e foi para a casa de banho. Encheu a banheira de água fria e barbeou-se rapidamente. Quando se ia a meter no banho, Ritchie gritou-lhe:
— Como vais de massas?
— Muito mal. Já não tenho nenhuma camisa e restam-me dezoito dólares. Além disso, Manuel chega na segunda-feira, tenho de lhe devolver o apartamento.
Mas estava a pensar no jornal: Ritchie lia enquanto esperava; Gomez ouvia-o voltar as páginas. Limpou-se cuidadosamente; em vão: a água emergia da toalha. Enfiou a camisa húmida, esfregando-a nas costas, e entrou no quarto.
— Desafio dos Gigantes.
Gomez olhou Ritchie sem compreender.
— O basebol, ontem. Ganharam os Gigantes.
— Ah!, sim, o basebol...
Baixou-se para apertar os sapatos. Procurava ler, espreitando, os títulos da primeira página. Acabou por perguntar:
— E Paris?
— Não ouviste a rádio?
— Não tenho rádio.
— Acabado, liquidado disse Ritchie tranquilamente.— Entraram esta noite.
Bertrand, 1975
(Autores Universais)
trd. Isabel Brito
(lido em 1998)