Existencialismus: A Condição Humana


A CONDIÇÃO HUMANA
ANDRÉ MALRAUX
(1933)

Meia-noite e meia hora
Ousaria Tchen erguer o mosquiteiro? Agiria através dele? A angústia apertava-lhe o estômago; conhecia a sua própria firmeza, mas não conseguia nesse momento pensar nela senão com pasmo, fascinado por aquele amontoado de musselina branca que caía do tecto sobre um corpo menos visível que uma sombra, e do qual apenas saía aquele pé meio inclinado pelo sono, vivo contudo — carne de homem. A única luz vinha do edifício vizinho: um grande rectângulo de electricidade pálida, cortada pelos pinásios da janela, um dos quais listrava a cama precisamente por cima do pé como para acentuar nele o volume e a vida. Quatro ou cinco buzinas chiaram ao mesmo tempo. Descoberto? Combater inimigos que se defendem, inimigos acordados, que alivio! 
A vaga de ruído tombou: qualquer engarrafamento de carros (havia ainda engarrafamentos de carros, lá longe, no mundo dos homens...). Viu-se de novo em frente da grande mancha mole da musselina e do rectângulo de luz, imóveis naquela noite em que o tempo não contava. 
Repetia a si próprio que aquele homem tinha de morrer. Tolamente: pois sabia que o mataria. Preso ou não, executado ou não, pouco importava. Apenas existia aquele pé, aquele homem que deveria matar sem que ele se defendesse — porque, se ele se defendesse, chamaria. 
Pestanejando, Tchen descobria em si, até à náusea, não o combatente que esperava, mas um sacrificador. E não apenas aos deuses que escolhera; sob o seu sacrifício à revolução erguia-se um mundo de profundidades, junto das quais esta
noite esmagada de angústia não era senão claridade. «Assassinar não é apenas matar, ai...» Nos bolsos, as mãos hesitantes seguravam, a direita uma navalha fechada, a esquerda um punhal curto. Metia-as para o fundo o mais possível, como se a noite não bastasse para esconder os seus gestos. A navalha era mais segura, mas Tchen sentia que não poderia nunca servir-se dela; o punhal desagradava-lhe menos. Largou a navalha, cujo cabo lhe penetrava nos dedos crispados; o punhal estava nu no bolso, sem bainha. Fê-lo passar para a mão direita, deixando cair de novo a esquerda sobre a lã da camisola, onde ficou colada. Elevou ligeiramente o braço direito, pasmado do silêncio que continuava a rodeá-lo, como se o seu gesto devesse desencadear a queda de alguma coisa. Mas não, não se passava nada: era sempre a sua vez de agir. Aquele pé vivia como um animal adormecido. Terminava um corpo? «Será que estou a ficar doido?» Era preciso ver aquele corpo. Vê-lo, ver aquela cabeça; para isso, entrar na luz, deixar passar sobre a cama a sua sombra atarracada. Qual seria a resistência da carne? Convulsivamente, Tchen enterrou o punhal no braço esquerdo. A dor (não conseguia aperceber-se de que era o seu braço), a ideia do suplício certo, se o que dormia despertasse, aliviou-o por segundos: o suplício era preferível a esta atmosfera de loucura. Aproximou-se. Era bem o homem que vira, duas horas antes, em plena luz. O pé, que quase tocava as calças de Tchen, rodou de repente como uma chave, e voltou à mesma posição na noite tranquila. Talvez o adormecido sentisse uma presença, mas não o suficiente para acordar... Tchen estremeceu: um insecto corria-lhe na pele. Não; era o sangue do braço que corria em fio. E sempre a sensação de enjôo. 
Um único gesto, e o homem estaria morto. O matar não era nada; o tocar é que era impossível. E era preciso ferir com precisão...

Livros do Brasil, 2000
(Dois Mundos)
trd. Jorge de Sena
(lido em 1995; 2003)