Existencialismus: Fogo Fátuo


O FOGO-FÁTUO
seguido de
Adeus a Gonzague
DRIEU LA ROCHELLE
(1939)

Naquele momento Alain olhava com obstinação para Lydia. Mas perscrutava-a assim desde que ela, três dias antes, chegara a Paris. Do que estaria à espera? De um súbito esclarecimento a respeito dela ou de si próprio. 
Lydia também olhava para ele com olhos dilatados mas sem fixidez. E não tardou que voltasse a cabeça, baixasse as pálpebras e ficasse absorta. Em quê? Em si própria? Seria realmente dela, a cólera rabugenta e consumada que lhe inchava o pescoço e o ventre? Não passava do humor de um instante. E já tinha acabado. 
O que também fez com que ele deixasse de a olhar. No que lhe dizia respeito, a sensação tinha deslizado, tão impossível uma vez mais de agarrar como uma cobra entre duas pedras. Manteve-se durante um momento imóvel, deitado em cima dela, mas não se abandonava, crispado, soerguido pelos cotovelos. Depois, como se a carne faltasse aos seus deveres sentiu-se inútil e, ao lado dela, voltou-se para cima. Lydia estava estendida quase à beira da cama; ele só teve espaço para ficar de lado, bem encostado e mais alto do que o seu corpo. 
Lydia voltou a abrir os olhos. Não viu mais do que um busto peludo, e nenhuma cabeça. Mas não se importou: não tinha passado por nada de muito violento, embora o gatilho tivesse ainda assim estalado; não mais do que isto ela tinha alguma vez conhecido, uma sensação que não irradiava mas era nítida. 
A fraca luz que tiritava na lâmpada do tecto só deixava ver, através do lenço com que Alain a tinha embrulhado, paredes ou móveis desconhecidos. 
— Pobre Alain, como sofres — disse ela ao fim de um momento; e sem mostrar pressa deu-lhe um lugar. — Um cigarro pediu. 
— Passou muito tempo... — murmurou ele com uma voz sem expressão. 
Agarrou no maço que tinha tido o cuidado de pôr minutos antes na mesa-de-cabeceira, quando se tinham deitado. Era um maço intacto, mas o terceiro daquele dia. Rebentou-o com um golpe de unha, e sentiram prazer em tirar do invólucro que os apertava dois pequenos rolos brancos, bem cheios de um cheiroso tabaco, como se estivessem desde há muito a passar por uma privação. 
Sem ter o trabalho de voltar a cabeça, deitando-se de costas e dando uma torção ao bonito ombro ela procurou com uma mão cega a sua carteira na outra mesa-de-cabeceira, tirando de lá um isqueiro. Os dois cigarros chamuscaram. A cerimónia ti-nha acabado, era preciso falar. 
Não era aliás uma coisa que os aborrecesse, como antigamente acontecia; já sem medo de se mostrarem, chegara qualquer deles ao ponto de achar que a realidade do outro era curta mas ainda saborosa; talvez se tivessem deitado juntos uma dúzia de vezes. 
— Sinto-me contente, Alain, por estar um instante sozinha contigo. 
— Talvez tenhas tido uma permanência um pouco atribulada. 
Ele não tentou desculpar-se pelo que tinha acontecido. E ela não o culpava; bastava-lhe andar com ele para correr o risco de tais incidentes. Mas não estaria, ainda assim, a fazer algum secreto esforço para se convencer de que viver três dias com Alain em Paris era passar um na esquadra da polícia, depois de a apanharem a acompanhá-lo num covil de drogados? 
— É verdade! Esta manhã vais-te embora — acrescentou ele com a voz levemente velada por um despeito. 
Lydia voltava no mesmo Léviathan que a tinha trazido. Mas fora obrigada, durante toda a noite anterior, a telefonar porque não tinha feito em Nova Iorque, seu local do regresso, nenhuma reserva, apesar de declarar que se limitaria a uma curta passagem por Paris. Teria sido desleixo ou uma secreta ideia de ali ficar? Neste caso, o incidente policial é que a fazia partir, aquela noite passada numa cadeira e no meio de detectives com cheiro forte e a deitarem-lhe fumo para o nariz, en-quanto Alain ia mostrando um ar abatido que a surpreendia. Apesar da sua nacionalidade americana e de imediatas intervenções, a humilhação tinha durado várias horas. 
Estava no entanto obstinada. 
—  Alain, temos de nos casar. 
Dizia-lho para ele saber que apanhara por causa disso o Léviathan
Seis meses antes, recém-divorciada, tinha uma noite ficado noiva de Alain numa casa de banho de Nova Iorque. Mas passados três dias casara-se com outro, um desconhecido de quem se tinha, aliás, separado pouco depois. 
— Não tarda que o meu divórcio seja declarado. 
— Não direi o mesmo do meu — respondeu Alain com indiferença um tanto afectada. 
— Bem sei que ainda gostas da Dorothy. 
Era verdade, mas isso não impedia que tivesse vontade de se casar com a Lydia. 

Sistema Solar, 2016
trd. Aníbal Fernandes

(lido em 2000; 2015)