Existencialismus: O Homem Revoltado


 
O HOMEM REVOLTADO
ALBERT CAMUS
(1951)

Existem crimes de paixão e crimes de lógica. O Código Penal distingue-os, muito facilmente, recorrendo à ideia de premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Os nossos criminosos já não são aqueles jovens desarmados que invocavam o amor como desculpa. Pelo contrário, são adultos, e o seu álibi é irrefutável: é a filosofia, que pode servir para tudo, até para transformar os assassinos em juízes. 
Heathcliff, n'O Monte dos Vendavais, mataria o mundo inteiro para ficar com Cathie, mas nunca diria que esse assassínio era fruto da razão ou poderia ser justificado por um sistema. Realizava-o, e a sua crença terminava aí. Isto implica um amor forte e carácter. Sendo rara a força no amor, este assassínio é considerado invulgar e mantém, portanto, os seus contornos de invasão. Mas a partir do momento em que, por falta de carácter, alguém procura esconder-se atrás de uma tese, a partir do momento em que o crime se torna razoável, prolifera como se fosse a própria razão, e assume todas as figuras do silogismo. Era solitário como um grito, ei-lo depois universal como a ciência. Ontem era julgado, hoje torna-se lei.
 Não é este o lugar certo para nos indignarmos. Este ensaio tem por objetivo, uma vez mais, aceitar a realidade desta época, que é a do crime lógico, e examinar em pormenor as suas justificações: é uma tentativa para compreender o meu tempo. Talvez se pense que uma época que, em cinquenta anos, erradica, subjuga ou mata setenta milhões de seres humanos, deve simplesmente e antes de mais ser julgada. Mas é também necessário que a sua culpa seja entendida. Em tempos mais inocentes, em que um tirano arrasava aldeias para sua eterna glória, em que um escravo acorrentado à carroça do vencedor desfilava pelas aldeias em festa, em que o inimigo era atirado às feras em frente ao povo reunido em assembleia,
perante crimes tão cândidos, a consciência podia manter-se inabalável e o julgamento ser claro. Mas os campos de escravos sob a bandeira da liberdade, os massacres justificados por amor ao ser humano ou pelo desejo de uma humanidade superior, interrompem, de certo modo, o julgamento. Quando o crime se disfarça com os despojos da inocência, por uma estranha inversão de valores característica da nossa época, é a própria inocência que se vê obrigada a fornecer as suas justificações. Será ambição deste ensaio aceitar e examinar esse estranho repto.
 Trata-se de saber se a inocência, a partir do momento em que age, não pode deixar de matar. Só podemos agir no nosso tempo e entre os que estão à nossa volta. Não saberemos nada enquanto não soubermos se temos o direito de matar aquele que está à nossa frente ou de permitir que ele seja morto. Uma vez que qualquer ação, hoje em dia, direta ou indiretamente, vai desembocar em assassínio, não podemos agir antes de saber se, e em que medida, devemos determinar a morte. 
O importante, pois, ainda não é ir à raiz das coisas, mas, sendo o mundo como é, saber como devemos comportar-nos nele. Em tempos de negação, poderá ser útil interrogarmo-nos sobre a questão do suicídio. Em tempos de ideologias, é necessário ajustar contas com o assassínio. Se o assassínio tem as suas razões, nós e a nossa época somos o resultado disso. Se as não tiver, estamos num mundo louco, e não há outra saída senão encontrar uma razão ou desistir. De qualquer modo, compete-nos a nós responder com clareza à pergunta que nos é posta, por entre o sangue e os clamores do século. Até porque somos confrontados com ela. Há trinta anos, antes de nos decidirmos pela morte, já se negara muito, a ponto de se chegar à própria negação através do suicídio. Deus engana, todos enganam, até eu próprio; portanto, morro: era essa a questão do suicídio. Hoje, a ideologia só nega os outros, os únicos que enganam. Portanto, matamos. Todas as madrugadas, assassinos cheios de patentes infiltram-se numa célula: em causa, o assassínio. 

Porto Editora (Livros do BrasiL), 2019
(Dois Mundos)
trd. Maria Etelvina Santos


O HOMEM REVOLTADO
(lido em 2002)