Existencialismus: Para Sempre

PARA SEMPRE
VERGÍLIO FERREIRA
(1983)
Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. E uma comoção abrupta — sê calmo. Na aprendizagem serena do silêncio. Nada mais terás que aprender? Nada mais. Tu, e a vida que em ti foi acontecendo. E a que foi acontecendo aos outros — é a História que se diz? abro a porta do quintal. É um portão desconjuntado, as dobradiças a despegarem-se. Há muito tempo já que aqui não vinhas. Sandra era da cidade, gostava da capital, detestava a vida da aldeia. Lá ficou. Abro a porta devagar, ela range para o espaço do jardim. É um jardim morto, as plantas secas, os canteiros arrasados nas pedras que os limitavam. Alguns têm só terra ou hastes secas de roseiras. Vejo-as do portão, o carro à entrada a trabalhar. Depois meto-o na garagem, que é um barracão ao lado da casa. Um silêncio súbito, silêncio da terra. Só vozes ermas dos campos, ouço-as no calor parado da tarde. Reparo agora melhor no pequeno jardim. Uma selva bravia. As plantas selvagens irromperam de todo o lado, aos cantos dos muros à volta, junto à casa. Há algumas armações de madeira ainda, já apodrecidas, suspensas de arames, sem flores. Olho-o um instante, olho a casa, circunvago o olhar. Preparar o futuro — o futuro... E uma súbita ternura não sei porquê. Silêncio. Até ao oculto da tua comoção. Preparar o futuro, preparação para a morte. Está certo. Parte-se carregado de coisas, elas vão-se perdendo pelo caminho. Se ao menos uma breve ideia. Não tenho. Não é bem a vida que faz falta — só aquilo que a faz viver. Trago o carro para dentro, vou metê-lo na garagem. O carro acelera na tarde quente, a areia da alameda range. Paro, desligo o motor, um silêncio mais desértico. E um pequeno susto insinuado às coisas. São três malas apenas, virá o resto depois. Tomo duas, subo o balcão até meio, vou buscar depois a outra. E de repente dobra o ângulo oposto da casa, vem direita a mim. Um breve ruflar de saias compridas no silêncio, desliza imperceptivelmente, traz um molho de couves num braçado, tia Luísa.
— Já vieste, Paulinho?
Pára um pouco ao pé de mim.
— Estás morta! grito-lhe eu para o espaço em redor.
— Paulinho...
Tem os lábios cerzidos, a face macilenta. Dá a volta à casa pela frente, vejo-a agora de costas, desliza como aragem pelo chão. Em volta, o jardim imóvel no silêncio. Mas de súbito, aponta de novo à esquina da casa, vem de novo para mim, vem crescendo como um susto. Mas não me olha, não me fala. Vejo-a de costas outra vez, desaparece atrás da casa. É uma tarde de Verão, ergue-se de horizonte a horizonte. Uma voz canta ao longe, na dispersão do entardecer. Vem do fundo da terra, sobe em círculos pelo ar, evola-se na distância. Fico a ouvi-la no silêncio em redor. Um miúdo veio encostar-se ao portão da entrada, não dei conta de ele vir. Está imóvel, olha-me. Tem um riso parado, fita-me. Será algum neto ou ainda filho da Deolinda. Ela trata-me da casa, mas não me lembro de a avisar da minha vinda, — Eh, pequeno!
Não se move, com o riso fixo na boca. Vou para ele, ele evapora-se num sopro. Sento-me eu um instante num degrau do balcão. E de súbito, tia Luísa entra pelo portão, era um dia quente de Julho. Eu sentara-me num sítio onde o balcão dava sombra, à espera de que me chamassem para o almoço. Tia Luísa vinha da aldeia, tinha ido decerto buscar coisas à loja. Trazia os olhos baixos, a boca travada de ira. Sem me dizer palavra, subiu os degraus e desapareceu porta dentro. Céus. Que fiz eu? Vinha furiosa comigo, era evidente, que é que eu teria feito? Certa noite, eu erguera-me cauteloso, saíra sem ser ouvido, ia ter com a puta Adelaide que morava no Termo, o outro extremo da aldeia, eu morava no Cabo, que era oposto. Mas isso fora há umas três noites, alguém lhe teria dito? A Adelaide, eu combinara com ela, já estava à minha espera, abriu a porta, o quarto era ao lado. E imediatamente, a mão à pressa por todo o corpo, pelas nádegas, pelas mamas
— ... que me magoa
atirados de escantilhão sobre a cama, a minha cólera em pé, enrodilhados, escabujados até à aniquilação. Silêncio. Está uma tarde quente, um olhar suspenso na serra ao longe, na linha ondeada do seu cume.
Bertrand, 1994
(Obras de Vergílio Ferreira)
(lido em 1993)