Existencialismus: Pena Suspensa

PENA SUSPENSA
(Os Caminhos da Liberdade #2)
JEAN-PAUL SARTRE
(1947)
Sexta-Feira 23 de Setembro
Dezasseis horas e trinta em Berlim, quinze e trinta em Londres. O hotel entediava-se na colina, deserto e solene, com um velho no seu interior. Em Angoulême, Marselha, Gand, Douvres, pensavam: «Que estará ele a fazer? São mais de três horas, porque não desce?» Ele estava sentado no salão com as persianas semicerradas, os olhos parados sob as espessas sobrancelhas, a boca ligeiramente aberta, como se lhe viesse à memória uma lembrança muito antiga. Já não lia, a sua mão velha e malhada, que ainda segurava os papéis, pendia ao longo dos joelhos. Voltou-se para Horace Wilson e perguntou: «Que horas são?», e Horace Wilson respondeu: «Quatro e meia, mais ou menos.» O velho ergueu os seus grandes olhos, esboçou um sorriso amável e disse: «Está calor.» Um calor encarniçado, crepitante, faiscante, tinha caído sobre a Europa; as pessoas tinham calor nas mãos, nos olhos, nos brônquios; esperavam enjoadas de calor, de poeira e de angústia. No átrio do hotel, os jornalistas esperavam. No pátio três motoristas esperavam imóveis ao volante dos seus carros; do outro lado do Reno, imóveis no átrio do Hotel Dreesen, prussianos altos e vestidos de negro esperavam. Milan Hlinka não esperava mais. Desde a antevéspera que deixara de esperar. Houvera aquele dia pesado e sombrio, cortado por uma certeza fulgurante: «Eles abandonaram-nosl» Depois recomeçara a marcha do tempo, livremente; os dias já não se viviam por si mesmos, já não eram senão dias seguintes e doravante só haveria dias seguintes.
Às quinze horas e trinta Mathieu ainda esperava, à beira de um futuro horrível; no mesmo instante, às dezasseis e trinta, Milan já não tinha futuro. O velho levantou-se, atravessou o salão de joelhos firmes, num passo nobre e saltitante. Diz: «Senhores!» e sorri amavelmente; pousou o documento sobre a mesa e alisou as folhas com o punho cerrado; Milan colocara-se diante da mesa; o jornal aberto cobria toda a largura do oleado. Milan leu pela sétima vez:
«O presidente da República, e com ele o Governo, não puderam deixar de aceitar as propostas das duas grandes potências a respeito das bases para uma futura atitude. Nada mais nos restava fazer uma vez que ficámos sós.» Neville Henderson e Horace Wilson aproximaram-se da mesa, o velho voltou-se para eles, com um ar inofensivo e vazio, e disse: «Meus senhores, eis o que nos resta fazer.» Milan pensava: «Nada mais podia ser feito.» Um rumor confuso entrava pela janela e Milan pensava: «Ficámos sós.»
Uma vozinha fina ouviu-se da rua: «Viva Hitler!»
Milan correu à janela:
— Espera um pouco — gritou. — Espera que eu desça!
Ouviu-se uma fuga desastrada, o bater de galochas; ao fundo da rua o garoto voltou-se, remexeu o bolso da blusa e pôs-se a fazer movimentos com o braço. Duas pancadas secas contra a parede.
— É o pequeno Liebknecht — disse Milan —, está a dar o seu passeio.
Debruçou-se: a rua estava deserta como aos domingos. Os Schoenhof tinham pendurado na varanda bandeiras vermelhas e brancas com cruzes gamadas. Todos os postigos da casa verde estavam fechados. Milan pensa: «Nós não temos postigos.»
— É preciso abrir todas as janelas — disse ele.
— Porquê? — perguntou Anna.
— Quando as janelas estão fechadas, eles visam as vidraças.
Ana encolheu os ombros:
— De toda a maneira... — retorquiu ela.
Os cantos e gritos chegavam em grandes rajadas indefinidas.
— Continuam na praça — tornou Milan.
Pousara as mãos no peitoril e pensava: «Está tudo acabado.» Um homem corpulento surgiu ao fundo da rua. Trazia uma mochila às costas e apoiava-se a um bastão. Parecia cansado, seguiam-no duas mulheres, curvadas sob o peso de enormes fardos.
— Os Jägerschmitt estão de volta — diz Milan sem se voltar.
Tinham fugido na segunda-feira à tarde e deviam ter atravessado a fronteira na noite de terça para quarta-feira. Voltavam agora
de cabeça erguida. Jägerschmitt aproximou-se da casa verde e subiu os degraus da entrada. Um estranho sorriso desenhava-se no seu rosto empoeirado. Pôs-se a procurar nos bolsos do paletó e tirou uma chave. As mulheres haviam largado os fardos no chão e olhavam para ele.
— Voltas quando já não há perigo! — gritou-lhe Milan.
Anna diz com vivacidade:
— Milan!
Jägerschmitt erguera a cabeça. Viu Milan e os seus olhos claros brilharam.
— Voltas quando já não há perigo.
— Sim, volto— gritou Jägerschmitt.
—E tu, tu vais-te embora!
Deu uma volta à chave na fechadura e empurrou a porta; as duas mulheres entraram atrás dele. Milan voltou-se:
— Covardes imundos! — gritou.
— Tu provoca-los — disse Anna.
— São uns covardes — insistiu Milan — da raça suja dos Alemães. Lambiam-nos as botas há dois anos.
— Não importa. Não deves provocá-los.
Bertrand, 1975
(Autores Universais)
trd. Amélia Petinga

PENA SUSPENSA
(lido em 1998)