Existencialismus: A Peste

A PESTE
ALBERT CAMUS
(1947)
Os curiosos acontecimentos que servem de assunto a esta história produziram-se em 194..., em Orão. Segundo a opinião geral, não estavam aí no seu devido lugar, antes saíam um pouco do habitual. À primeira vista, Orão é, com efeito, uma cidade vulgar, que não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.
A própria cidade, confessemo-lo, é feia. Com o seu aspeto calmo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombas, sem árvores e sem jardins, onde não se sente o bater de asas nem o sussurro de folhas, uma cidade neutra, para dizer tudo? Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelos cestos de flores trazidos por rapazitos dos arredores: é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas demasiado secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então só é possível viver à sombra das persianas corridas. No outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só vêm no inverno.
Uma maneira cómoda de travar conhecimento com uma cidade é descobrir como lá se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Ou seja, as pessoas aborrecem-se e aplicam-se a criar hábitos. Os nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecerem. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, segundo a sua própria expressão, em fazer negócios. Naturalmente, têm gosto pelos prazeres simples, gostam das mulheres, do cinema e dos banhos de mar. Porém, muito sensatamente, reservam os prazeres para os domingos e os sábados à noite,
procurando nos outros dias da semana ganhar muito dinheiro. À tarde, quando saem dos escritórios, reúnem-se a uma hora fixa nos cafés, passeiam na mesma avenida ou põem-se às varandas. Os desejos dos mais novos são violentos e breves, enquanto os vícios dos mais velhos não vão além das associações de bolómanos, os banquetes das amicales e as assembleias onde se joga forte sobre a sorte das cartas.
Dir-se-á que nada disso é peculiar à nossa cidade e que, em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e perderem em seguida, a jogar às cartas, no café, ou a dar à língua, o tempo que lhes resta para viverem. Mas há cidades e países onde as pessoas têm, de tempos a tempos, a suspeita de que existe mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida. Simplesmente houve essa suspeita, e sempre é um ganho. Orão, pelo contrário, é uma cidade sem suspeitas, ou seja, uma cidade inteiramente moderna. Não é, pois, necessário precisar a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente no chamado ato do amor ou se entregam a um longo hábito entre dois. Também isso não é original. Em Orão, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, é-se obrigado a amar sem o saber.
O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que lá se encontra em morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais justo falar em desconforto. Nunca é agradável estar doente, mas há cidades e países onde nos amparam na doença e onde se pode, de certo modo, deixar correr. Um doente precisa de ternura, gosta de se sentir apoiado em qualquer coisa, o que é bastante natural. Em Orão, porém, os excessos do clima, a importância dos negócios que lá se tratam, a insignificância da paisagem, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos prazeres, tudo exige boa saúde. Um doente, lá, encontra-se muito só. Como pensar então naquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto no mesmo momento toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de letras de câmbio, de mercadorias recebidas ou de descontos? Compreender-se-á o que há de desconfortável na morte, mesmo moderna, quando ela sobrevém num lugar tão árido.
Porto Editora (Livros do Brasil), 2016
(Dois Mundos)
trd. Ersílio Cardoso

A PESTE
(lido em 1995; 2002; 2017)