Gloriosos Pândegos: A Desordenada Cobiça dos Bens Alheios

A DESORDENADA COBIÇA DOS BENS ALHEIOS
CARLOS GARCÍA
(1619)
É tão parecida a terribilidade que do inferno nos pintam as sagradas letras com a miséria que na prisão se padece que, se não tivesse esta a esperança que à outra falta, poderíamos dar-lhe o título de verdadeiro inferno, dado que no essencial têm recíproca e cabal correspondência. Por isso me espanta em extremo a inútil diligência que alguns escritores modernos fazem, procurando modos equivalentes com que declarar ao mundo a ferocidade daquela horrível habitação, quando basta para conseguirem o seu intento representar a desesperada vida que na prisão se padece; a qual com a sua extrema miséria, será perfeitamente conhecida, se primeiro tratarmos por miúdo as desditas e atribulações que no perpétuo inferno se passam.
Os autores que sobre esta matéria escrevem, reduzem as penas do inferno a dois pontos: o primeiro e principal dos quais é a privação da divina Essência, a que eles chamam pena essencial, por ser a que propriamente contém quantos tormentos se podem imaginar no inferno. E é esta de tão má digestão, tão extrema e tão terrível que, se a alma tiver no outro mundo quantos prazeres e gostos pode inventar o humano pensamento, estando privada de Deus, não haverá cousa que tenha sequer uma mínima sombra de consolo. Porque, sendo Deus a raiz e fonte de tudo o que é bom, e só nele estando depositados todos os contentamentos e alegria que há no mundo, é evidente que com ele terá a alma todo o consolo possível, e sem ele é um infinito abismo de confusão e dor; com o qual, e com a certeza que tem de que o seu mal jamais se acabará, amaldiçoa o seu ser, o seu nascimento e os dias que viveu.
A outra pena que no inferno têm os condenados é a acidental, assim chamada por vir juntar-se à primeira como acidente; a qual não serve senão para avivar a apreensão do condenado, precipitando-o na amarga contemplação da sua miséria. A esta se reduzem a miserável companhia dos demónios, a horrível e assustadora habitação do inferno, a diversidade de torturas, as contínuas lamentações, o caos, desordem, confusão, fogo, tremor, enxofre, trevas e outras mil aflições que ali se passam, das quais e da privação da divina Essência se compõe o miserável e perpétuo inferno.
Antígona, 2002
trd. José Colaço Barreiros
(lido em 2006)