Gloriosos Pândegos: Gargântua & Pantagruel Vol.I


GARGÂNTUA & PANTAGRUEL 
(Vol.I: livros I, II, III)
FRANÇOIS RABELAIS
(1532-52)

Como Gargântua deu o seu presente de boas-vindas aos parisienses e como ele roubou os grandes sinos da igreja de Notre-Dame
Depois de se terem retemperado durante uns dias, ele visitou a cidade, e toda a gente o olhava com grande admiração. Pois o povo de Paris é tão estúpido, tão idiota, e por natureza tão inepto, que um saltimbanco, um vendedor dc relíquias, um mulo com os seus címbalos, um tocador de sanfona no meio de um caminho, juntarão sempre mais pessoas do que um pregador evangélico. E perseguiram-no dc um modo tão molesto que ele se viu obrigado a ir descansar nas torres de Notre-Dame. Estando nesse local e vendo tantas pessoas à sua volta, disse claramente: «Acho que estes patifes querem que eu lhes pague aqui o meu direito de boas-vindas e o meu proficiat. É justo. Vou dar-lhes vinho. Mas não me parece que eles se vão pôr a dançar aos pares». 
Então, sorrindo, abriu a sua bela braguilha e, levantando no ar o seu membro, mijou para cima deles tão energicamente que afogou duzentos e sessenta mil quatrocentos e dezoito. Sem contar com as mulheres e com as criancinhas. Um certo número deles escapou àquela enxurrada de mijo graças à ligeireza dos seus pés. E, quando chegaram ao topo da Universidade, suando, tossindo, cuspindo e sem fôlego, começaram a blasfemar e a abjurar, uns por cólera, outros por riso. «Carymary, Carymara. Pela minha santa Amada, vós banhai-nos de riso»...

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Da origem e da antiguidade do grande Pantagruel
Não será coisa inútil nem ociosa, uma vez que temos tempo, recordar-vos a primeira fonte e a origem do nascimento do bom Pantagruel. Pois vejo que todos os bons historiadores assim fizeram as suas crónicas, não apenas os Árabes, Bárbaros e Latinos, mas também os Gregos e os Gentios, que foram eternos bebedores.
 Convém, portanto, que noteis que, no começo do mundo (falo de um tempo distante, há mais de quarenta quarentenas de noites, para contar à maneira dos antigos Druidas), pouco depois de Abel ter sido morto pelo seu irmão, Caim, a terra embebida de sangue foi certo ano tão fértil em todos os frutos, e de modo particular em nêsperas, que se lhe chamou para eterna memória o ano das grandes nêsperas, pois com apenas três se perfazia um alqueire. 
Nesse ano, as calendas foram determinadas pelos breviários dos Gregos. O mês de Março não foi o da Quaresma, e os meados de Agosto calharam em Maio. No mês de Outubro, parece-me, ou então de Setembro (para que não erre, pois disso me quero escrupolosamente salvaguardar), houve essa semana tão célebre nos anais que é designada como semana das três quintas-feiras; pois houve mesmo três, por causa das irregularidades bissextas, em que o sol vacilava um tudo nada para o lado esquerdo e a Lua alterava o seu curso em mais de cinco toesas, e foi claramente visto o movimento de trepidação das estrelas fixas, de tal modo que a Plêiade mediana, deixando as suas companheiras, desceu para a linha equinocial, e a estrela chamada Espiga deixou a Virgem, retirando-se em direcção à Balança; são estas matérias espantosas tão duras e difíceis, que os astrólogos não as conseguem morder. Teriam de ter dentes muito compridos para conseguirem chegar tão longe. Podeis acreditar que o mundo com muito agrado comia as ditas nêsperas, pois elas eram belas ao olhar e deliciosas ao paladar. 
Porém, tal como Noé, o santo homem — ao qual tantos somos devedores por nos ter plantado a vinha, de onde nos vem esse nectarino delicioso, precioso, celeste, jovial deifico licor a que chamamos pinga — foi enganado ao bebê-lo, pois ignorava a sua grande virtude e o seu poder, semelhantemente os homens e mulheres daquele tempo comiam com grande prazer esse belo e vigoroso fruto. Mas aconteceram-lhes acidentes muitos diversos por causa disso. Pois a todos apareceu no corpo um inchaço muito horrível, mas não no mesmo lugar a todos. Pois alguns inchavam no ventre, e o ventre tornava-se-lhes corcovado como um grande tonel no qual estava escrito «Ventrem omnipotentum», e tinham sido sempre pessoas de bem e bons folgazões, e foi dessa raça que nasceram São Pansart e a Terça-ferra Gorda. 
Outros inchavam pelos ombros e ficavam tão curvados, que lhes chamavam carregadores de montanhas, os quais podeis ainda ver pelo mundo em diversos sexos e estados, e foi dessa raça que saiu Esopo, do qual podeis apreciar por escrito os belos feitos e ditos. 
Outros inchavam em comprimento pelo membro ao qual chamamos o trabalhador da natureza, de modo que o tinham maravilhosamente comprido, grande, grosso, vigoroso e soerguido à moda antiga, ao ponto de o usarem como cinto, dobrando-o cinco ou seis vezes à volta do corpo. E, se lhe acontecesse ser o momento oportuno e estar o vento de popa, diríeis ao vê-los que eram homens com a lança em repouso antes de alvejarem a quintana. E desses se perdeu a raça, tal como dizem as mulheres, pois elas lamentam continuamente que «já não haja daqueles grossos», etc. Sabeis o resto da canção. 
Outros cresciam tão imensamente em matéria de colhões que com três se atingia facilmente um almude. Deles são descendentes os colhões de Lorraine, os quais nunca ficam na braguilha, pois descaem pelo fundo dos calções. 
Outros cresciam pelas pernas, e ao vê-los teríeis dito que eram grous ou flamingos, ou então pessoas em cima de andas, e os estudantes mais novos chamavam-lhes em gramática Jambus
E a outros crescia tanto o nariz, que este parecia a ponta de um alambique todo ele matizado, todo ele resplandecente de pequenos botões, pululante, purpureado, penachado, todo esmaltado, todo aborbulhado e bordado a vermelho. E assim tereis visto o cónego Panzoult e Piedebois, médico de Angers, de uma raça em que poucos gostavam da tisana, mas em que foram todos amantes do caldo setembrino. Naso e Ovídio fixaram-lhe a origem, e todos aqueles de quem ficou escrito «Ne reminiscarts».
Outros cresciam pelas orelhas, e tinham-nas tão grandes que de uma faziam gibão, calções e casaco, e se cobriam com a outra como se fosse uma capa à espanhola. E diz-se que em Bourbonnais ainda dura essa raça, à qual chamam orelhas de Bourbonnaís. Os outros cresciam ao longo de todo o corpo. E daí vieram os Gigantes; e por meio deles Pantagruel. 

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Como Panurge se aconselha com Herr Trippa 
— Eis todavia — prosseguiu Epistemon o que poderíeis fazer antes de regressarmos para junto do nosso rei, se acreditardes em mim. Aqui, perto de L'Ile-Bouchard, mora Herr Trippa. Vós sabeis como, por arte de astrologia, geomancia, quiromancia, metopomancia e outras de semelhante farinha, ele prediz todas as coisas futuras; discutamos com ele o vosso caso. 
— Disso — respondeu Panurge — não percebo nada. Mas sei bem que um dia, estando ele a falar com o grande rei de coisas celestes e transcendentais, os lacaios da Corte, na escadaria do corredor, fornicaram gostosamente a mulher dele, que era bastante jeitosa. E ele, vendo sem lunetas todas as coisas etéreas e terrestres, discorrendo acerca de todos os casos passados e presentes, predizendo todo o futuro, não foi capaz de ver a sua mulher a sacudir-se toda, pelo que não ficou a saber dessa novidade. Mas vamos a casa dele, já que assim o quereis. Aprender nunca é demais.
 No dia seguinte, chegaram à morada de Herr Trippa. Panurge deu-lhe um manto de pele de lobo, uma grande espada pontiaguda, muito dourada e com forro de veludo e cinquenta belos angelotz; discutiu depois familiarmente o seu caso com ele.
 Assim que os viu, Herr Trippa olhou Panurge no rosto e disse-lhe: 
— Tens a metaposcopia e a fisionomia de um cornudo; estou a falar de um cornudo envolto em escândalo e difamação. 
Depois, examinando a mão direita de Panurge em todos os seus aspectos, disse: 
— Esta falsa linha que vejo aqui, por cima do mons Jovis, nunca foi vista a não ser na mão de um cornudo. 
Fez depois rapidamente com um estilete um certo número de pontos diversos, juntou-os por geomancía, e disse: 
— Tão verdadeira como a verdade é a certeza de que serás encornado muito pouco tempo depois de casares. 
Feito isso, perguntou a Panurge o horóscopo do seu nascimento. Tendo-lho dado Panurge, ele traçou prontamente a sua casa do céu, em todas as suas partes e, examinando a posição e os aspectos nos seus trios de astros, soltou um grande suspiro e disse: 
— Já tinha predito claramente que tu serias encornado; disso não te podes livrar. Aqui ganho uma nova e maior segurança; e afirmo-te que vais mesmo ser cornudo. Além disso, serás espancado pela tua mulher e por ela serás roubado. Pois apenas encontro na sétima casa aspectos malignos, entrechocando-se todos os signos que têm cornos, como Carneiro, Touro, Capricórnio e outros. Na quarta casa, encontro a decadência de Júpiter, com o aspecto tetrágono de Saturno associado a Mercúrio. Vais ser bem enganado, homem de bem. 

E-Primatur, 2023
trd. Manuel de Freitas
(lido em 2025)