Gloriosos Pândegos: Mandriões do Vale Fértil

MANDRIÕES DO VALE FÉRTIL
ALBERT COSSERY
(1948)
O garoto carregou a fisga e, de respiração suspensa, ficou muito tempo a fazer pontaria. Depois disparou, de cabeça inclinada para trás e a boca aberta, raiando-lhe no rosto uma estranha excitação. A pedra, bruscamente, partiu num silvo, per-dendo-se na ramagem do sicômoro. Num ápice, toda a passarada esvoaçou, lançando gritinhos de terror. Foi um tiro falhado.
Serag permanecia imóvel, de pé sobre o talude que bordejava o milheiral. Fitava o garoto já desde há um bocado. Era um rapazito de uns dez anos, muito arrebatado, com uns olhos imensos a saltarem-lhe do rosto e aspecto de assassino precoce. Estava vestido com andrajos e parecia vir de muito longe, vendo-se-lhe no corpo fortes sinais de aventura. O ardor dele, e também uma certa extravagância que emanava de toda a sua pessoa, fascinavam Serag. Comportava-se realmente de forma assombrosa, em constantes movimentos sacudidos, como um brinquedo mecânico.
De vez em quando baixava-se para apanhar pedras, erguendo-se de um pulo para continuar a retesar a fisga. Agora lançava as pedras sem sequer apontar, umas atrás das outras, como em pânico. Serag sentia a respiração rápida e sôfrega do garoto. Não conseguia deixar de o fitar, e tolamente sorria perante esta violência excessiva, que na solidão dos campos adquiria a aparência de um espantoso pesadelo.
Há quanto tempo duraria aquilo? Serag lembrava-se de ter visto o garoto, e de logo, bruscamente, tudo se haver alterado. Não sabia em que consistia esta nova composição do espaço; mas tudo em redor tinha a sua marca, como uma angústia irrespirável.
Enfiou as mãos nos bolsos das calças, curvando um pouco os ombros, como a precaver-se contra aquele furor cego, e depois, novamente, ficou imóvel, atento aos mínimos gestos do garoto.
Antígona, 2014
trd. Júlio Henriques

MANDRIÕES NO VALE FÉRTIL
(lido em 2002)