Gloriosos Pândegos: Memórias um Pinga-Amor


MEMÓRIAS DE UM PINGA-AMOR
GROUCHO MARX
(1962)

Viva a Diferença!
Até aos quatro anos, nunca fui capaz de fazer a distinção entre os sexos. Ia para dizer «os dois sexos», mas, hoje em dia, há tantas variantes que se alguém disser «os dois sexos» logo os amigos o considerarão um anacronismo murcho, perguntando-se em que caverna terá ele estado metido durante as últimas três décadas. 
Tomei consciência pela primeira vez da existência de um mundo mais extravagante quando, certo dia, a única tia que tinha e que era tão endinheirada quanto sofisticada veio visitar a minha mãe. Era casada com um famoso actor de «vaudeville» e, apesar de ser ainda jovem, estivera já em Chicago, St. Louis, e passara até uma noite em Denver. Usava cabelo ruivo, tacões altos, e tinha uma bela figura, bem lançada, que fazia curvas onde quer que todas as formas dese-jáveis devem fazer curvas. (Bem sei que a palavra «forma» marca uma época, e só lamento não ter então idade para marcar encontro com ela.) 
Quando ela entrou no nosso apartamento, todo ele se encheu de uma fragrância exótica, torturante, que mais tarde vim a reconhecer como o odor característico de um bordel. É claro que na altura não tinha a mínima ideia do que fosse, pois outra coisa não conhecia que o líquido que se usa para embalsamar. Mas o que quer que fosse era excitante, e nada tinha a ver com outras coisas que eu já tivesse cheirado.
 No nosso apartamento, roído pelas traças, estava habituado era aos odores combinados de quatro irmãos que raramente se lavavam, da sopa de feijão e de um fogão de querosene que enchia tudo de fumo. E agora ali estava eu, respirando o violento perfume das eras: uma fragrância que fazia os homens fortes tremerem de desejo e os fracos lastimarem-se, cheios de desespero. 
A minha tia era espantosamente bonita, e sorriu encantadoramente quando olhou para mim. Voltando-se para a minha mãe, disse: «Sabes, Minnie, Julius tem uns olhos castanhos tão grandes e bonitos como eu nunca vi.» 
Até àquele momento nunca dera qualquer atenção aos meus olhos.
Oh, sabia perfeitamente que era míope, mas nunca me ocorrera que os meus olhos fossem qualquer coisa de especial. Consciente agora dos meus novos encantos, levantei as sobrancelhas o mais que pude e olhei para ela. Não voltou a olhar-me, mas eu continuei a fixá-la, na esperança de que, se os meus olhos continuassem a crescer, decerto ela me faria um novo elogio. Mas não, tagarelava afanosamente com a minha mãe e, aparentemente, esquecera-me de todo. Pus-me a andar de um lado para o outro em frente dela, na esperança de que voltasse a gabar os meus grandes olhos castanhos. 
Passado algum tempo os olhos começaram a doer-me, do esforço inusitado que estava a fazer, e o perfume dela punha-me cada vez mais tonto. Mesmo assim continuava a não atrair a atenção dela mas, desejoso de outro elogio aos meus holofotes, pus-me a tossir. Não uma tossesinha fina, mas um sopro firme, tuberculoso, bem do fundo da garganta, que fazia lembrar uma lésbica representando o papel de uma virgem imaculada. Como resultado desta tosse ininterrupta a cabeça começou a doer-me, mas, apesar de todas as tentativas para lhe arrancar outro cumprimento, ela nunca mais voltou a reparar em mim.
 Compreendi por fim que era um caso desesperado e, cambaleando devido à minha má-disposição, saí do quarto aos tombos, desconcentrado e febril, mas feliz por esse primeiro elogio vindo de uma mulher... ainda que não passasse de uma observação casual de uma tia. 
Só muito mais tarde olhei para um espelho — e descobri então que os meus olhos são cinzentos.

Euro Clube, 1987
trd. Wanda Ramos
(lido em 2019)