Gloriosos Pândegos: O Bom Soldado Svejk


O BOM SOLDADO SVEJK
JAROSLAV HASEK
(1921)

A intervenção do bom soldado Svejk na Guerra Mundial 
— Com qu'então mataram-nos o Ferdinando — disse a mulher-a-dias ao senhor Svejk, que, tendo há anos abandonado o serviço militar, depois de definitivamente ser declarado idiota pela junta médica militar, ganhava o seu sustento com a venda de cães, feios monstros de sangue impuro, aos quais ele falsificava as árvores genealógicas. 
Além desta ocupação, estava atacado pelo reumatismo, e naquele preciso momento untava os seus joelhos com opodeldoque. 
— Qual Ferdinando, senhora Müllerová? — inquiriu Svejk sem parar de massajar os joelhos. — Eu conheço dois Ferdinandos. Um é servente no droguista Prusa e uma vez bebeu-lhe por engano um frasco de pomada para o cabelo, e depois ainda conheço o Ferdinando Kokoska, aquele que anda a apanhar os cagalhotos dos cães. Nem um nem outro fazem falta. 
— Mas vossemecê... O senhor arquiduque Ferdinando, aquele de Konopiste, esse gordo, beato. 
— Jesus Maria — exclamou Svejk, — isso é óptimo! E onde é que tal aconteceu ao senhor arquiduque? 
— Deram-lhe um tiro em Sarajevo, senhor Svejk, de revólver, sabe. Estava a passar por lá de automóvel com essa sua arquiduquesa. 
— Pois então vejamos bem, senhora Müllerová, de automóvel. Pois é, um senhor desses tem posses para tanto e nem lhe vem à cabeça que uma corrida dessas pode acabar de maneira infeliz. E ainda para mais em Sarajevo, senhora Müllerová, isso é na Bósnia. Devem ter sido os turcos. Lá está, não lhes devíamos ter tirado a Bósnia e a Herzegovina. Ora veja bem, senhora Müllerová. Poís então o senhor arquiduque já está com Deus Nosso Senhor. Passou muito tempo a sofrer? 
— O senhor arquiduque ficou logo arrumado, senhor Svejk. Sabe, com um revólver não se brinca. Outro dia também um senhor aqui em Nusle andou a brincar com um revólver, e abateu toda a família mais o porteiro, que tinha vindo ver quem andava aos tiros lá no terceiro andar. 
— Revólveres há, senhora Müllerová, com que a senhora não dá um tiro nem que faça o pino. Há muitos assim. Mas para o senhor arquiduque de certeza que foram comprar qualquer coisa melhor, e também apostava, senhora Müllerová, que esse homem que o fez se vestiu a condizer com a ocasião. Pois, sabe, abater um arquiduque é um trabalho muito difícil, não é como quando um caçador furtivo dá um tiro ao guarda-florestal. Aqui a questão é como chegar perto dele. A senhora não pode ir à caça de um senhor daqueles vestida com uns farrapos quaisquer. Tem de ir de cartola, para não ser presa por um polícia antes de lá chegar. 
— Dizem que foram vários, vossemecê. 
— Isso vai de si, senhora Müllerová — disse Svejk, acabando de massajar os joelhos, — se a senhora quisesse matar o senhor arquiduque ou o Imperador, nosso Senhor, certamente ia aconselhar-se com alguém. Mais gente tem mais juízo. Este aconselha isto, outro, aquilo, e depois a obra nasce, tal como no nosso hino. O mais importante é apanhar aquele momento exacto em que um senhor desses vem a pas-sar. Foi como, se bem se lembra, esse senhor Luccheni, que furou a nossa pobre Elisabeth, que Deus tem, com a tal lima. Andava a passear com ela. Depois vá-se lá acreditar em alguém; desde essa altura, nenhuma imperatriz vai passear. E o mesmo ainda está reservado para muitas pessoas. E vai ver, senhora Müllerová, que ainda vão chegar perto do próprio czar e da czarina, e pode ser mesmo que apanhem o próprio Imperador, nosso Senhor, já que começaram pelo seu tio. O velho senhor tem muitos inimigos. Ainda mais do que esse Ferdinando. Como recentemente dizia um senhor na cervejaria, há-de vir o tempo em que esses imperadores vão cair que nem uns tordos, e nem o ministério público lhes vai valer. Depois não tinha como pagar a despesa e o dono da cervejaria teve de o mandar prender. E ele deu um tabefe ao dono da cervejaria e dois ao guarda. Depois levaram-no de carroça a ver se ganhava juízo. Pois é, senhora Müllerová, hoje acontece cada uma. Isto é mais um golpe daqueles para a Áustria. Quando andei na tropa, havia lá um soldado de infantaria que matou a tiro o capitão. Carregou a espingarda e foi até à secretaria. Lá, disseram-lhe que não tinha nada que estar por ali, mas ele manteve a sua, que tinha de falar com o senhor capitão. Esse tal capitão veio cá para fora e logo o pôs de castigo. Este agarrou na espingarda e espetou-lhe um tiro direitinho no coração. A bala saiu pelas costas do senhor capitão e ainda causou prejuízo na secretaria. Partiu um frasco de tinta e esta derramou-se sobre actas de serviço. 
— E o que aconteceu a esse soldado? — inquiriu a senhora Müllerová passado um bocado, enquanto Svejk se vestia. 
— Enforcou-se num suspensório — disse Svejk, enquanto tirava o pó ao chapéu de coco. — E esse suspensório nem sequer era dele. Pediu-o emprestado ao chefe dos guardas, dizendo que lhe estavam a cair as calças. Havia de esperar que o fuzilassem? Sabe, senhora Müllerová, numa situação dessas uma pessoa fica com a cabeça a andar à roda. O chefe dos guardas foi despromovido por essa brincadeira e apanhou seis meses. Mas não os cumpriu. Fugiu para a Suíça e hoje faz lá de pregador de uma igreja qualquer. Hoje há pouca gente honesta, senhora Müllerová. Eu estou convencido de que também o senhor arquiduque em Sarajevo se enganou acerca desse homem que o abateu. Viu um senhor qualquer e pensou para si: este é com certeza um homem às direitas, se me está a dar vivas. E na volta esse senhor deu-lhe um tiro. Deu-lhe um ou vários? 
— Segundo escrevem no jornal, o senhor arquiduque ficou que nem um crivo, senhor Svejk. O homem despejou nele todas as balas. 
— Isso faz-se num instantinho, com uma rapidez assustadora. Para um assunto desses eu comprava uma browning. Parece um brinquedo, mas com aquilo a senhora Müllerová consegue abater vinte arquiduques em dois minutos, quer sejam magros ou gordos. Embora, cá entre nós, se acerte mais facilmente num arquiduque gordo do que num arquiduque magro. Se bem se lembra daquela vez em Portugal, deram um tiro no rei. Esse também era gordo como o outro. Pois já se sabe que um rei não há-de ser magro...

Tinta da China, 2021
(Literatura de Humor)
trd. Lumir Lahodil

O VALENTE SOLDADO CHVÉÏK
(trd. Alexandre Cabral)
(lido em 2022)


AVENTURAS DO VALENTE SOLDADO SVEJK
e Outras Histórias
(1921)
(l. 2003)