Gloriosos Pândegos: Os Versículos Satânicos


OS VERSÍCULOS SATÂNICOS
SALMAN RUSHDIE
(1988)

«Para se nascer de novo», entoou Gibreel Farishta, caindo dos céus, «é preciso primeiro morrer. Ho ji! Ho ji! Para se poisar na terra acolhedora, é preciso primeiro voar. Tattaa! Takathun! Como tornar um dia a sorrir, sem se chorar primeiro? Como conquistar o amor da mais querida, meu senhor, sem um suspiro? Baba, se queres renascer...» Pouco antes da alvorada, numa manhã de Inverno, por alturas do Ano Novo, dois homens adultos, vivos, de carne e osso, caíram de uma grande altitude, vinte e nove mil e dois pés, em direcção ao canal da Mancha, sem o auxílio de asas ou pára-quedas, atravessando um céu límpido. 
«Digo-te que tens de morrer, digo-te, digo-te», e por aí fora, sob uma lua de alabastro, até que um sonoro grito rasgou a noite, «Vai para o diabo mais as tuas canções», palavras que ficaram suspensas, cristalinas, na noite branca e gelada, «nos filmes tu só mexias a boca enquanto outros cantavam por ti, por isso agora poupa-me a esses barulhos infernais». 
Gibreel, o solista desafinado, tinha-se posto aos pinotes ao luar enquanto entoava o seu improviso, nadando no ar, mariposa, bruços, enrolando-se numa bola, abrindo braços e pernas contra o fundo quase infinito da quase-aurora, adoptando posturas heráldicas, rampante, agachado, opondo leveza à gravidade. Agora rebolou-se alegremente em direcção à voz sardónica. «Salve, Salad baba, és tu, ó excelente. Como vai isso, velho Compincha». Ao que o outro, uma sombra parda que ia caindo de cabeça para baixo com um fato cinzento, casaco todo bem abotoado, braços colados ao corpo, não parecendo dar-se conta da inverosimilhança do chapéu de coco que levava na cabeça, fez uma careta de pessoa avessa a tais epítetos. «Ei, Pateta», berrou Gibreel, com uma segunda piscadela de olho invertida, «Digna Londres, bhai! Aí vamos nós! Esses sacanas lá de baixo nem vão perceber o que lhes aconteceu. Meteoro ou trovoada ou castigo de Deus. Assim, sem mais nem menos, meu amigo. Dharrraaammm! Wham, na? Que entrada em cena, caramba. Podes crer: splat!» 
Sem mais nem menos: uma grande explosão, seguida de uma chuva de estrelas. Um começo universal, um eco em miniatura do nascer dos tempos... o avião a jacto Boston, voo AI-420, estoirou sem qualquer aviso, lá no alto, acima da grande cidade, corrupta, belíssima, branca de neve, luminosa, Mahagonny, Babilónia, Alphaville. Mas Gibreel já a baptizou, não devo interferir: a Digna Londres, capital de Vilayet, pestanejava piscava acenava no meio da noite. Enquanto, a essas altitudes himalaianas, um sol breve e prematuro surgia no ar pulverulento de Janeiro, um pequeno ponto luminoso desapareceu dos ecrãs de radar, e a atmosfera encheu-se de corpos, descendo do Everest da catástrofe para a palidez leitosa do mar. 
Quem sou eu? 
Quem há mais além de mim? 
O avião partiu-se ao meio, planta largando os seus esporos, ovo revelando o seu mistério. Dois actores, o saltitante Gibreel e o hirto e abotoado Sr. Saladin Chamcha, caíram como migalhinhas de tabaco de um velho charuto partido. Acima, atrás, abaixo deles, no vácuo, pairavam assentos reguláveis, auscultadores estereofónicos, carrinhos de bebidas, sacos de plástico para o enjoo, cartões de embarque, jogos de vídeo isentos de impostos, bonés com galões, copos de papel, cobertores, máscaras de oxigénio. E também — pois não eram poucos os imigrantes a bordo, sim, uma quantidade de esposas que haviam sido escrupulosamente interrogadas por funcionários razoáveis e competentes acerca das dimensões e sinais particulares dos órgãos genitais de seus maridos, e bom número de filhos sobre cuja legitimidade o Governo Britânico emitira as suas mais que razoáveis dúvidas — à mistura com os restos do avião, igualmente fragmentados, igualmente absurdos, flutuavam os detritos da alma, recordações destroçadas, mudas de pele de personalidades várias, línguas maternas decepadas, privacidades violadas, anedotas intraduzíveis, futuros extintos, amores perdidos, o sentido olvidado de palavras sonoras e ocas, pátria, pertença, lar. Um pouco estonteados pela explosão, Gibreel e Saladin mergulhavam como trouxas largadas por uma cegonha de bico descuidadamente entreaberto, e como Chamcha descia de cabeça para baixo, na posição recomendada para os bebés entrarem no canal do nascimento, começou a sentir uma vaga irritação ante a recusa do outro de cair normalmente. Saladin prosseguia no seu voo picado enquanto Farishta enlaçava o ar, cingindo-o com os braços e as pernas, actor frenético e esforçado, sem técnica nem contenção. Lá em baixo, cobertas de nuvens, aguardando a entrada em cena dos dois homens, as correntes vagarosas e geladas da Mancha inglesa, a zona designada para a sua reencarnação aquática. 

Dom Quixote / Círculo de Leitores, 1989
trd. Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira
(lido em 1997)