Gloriosos Pândegos: Pantagruel

PANTAGRUEL
REI DOS DÍPSODOS
FRANÇOIS RABELAIS
(1532)
Já que tempo nos sobeja, não será coisa vã nem ociosa lembrar-vos a primeira fonte e origem que teve o bom Pantagruel, pois vejo que os melhores historiógrafos trataram assim as suas Crónicas, não só Árabes, Bárbaros e Latinos, como os Gregos, pagãos que foram bebedores eternos.
Por isso vos convirá notar que no princípio do mundo (falo do longínquo, há mais de quarenta quarentenas de noites, para contar à moda dos antigos Druidas), num certo ano, pouco depois de Caim occidiar o seu irmão Abel, aquela terra empapada com o sangue do justo foi tão fértil em todo o fruto que os seus flancos dão, principalmente em nêsperas, que a mais velha memória lhe chamou o «ano das grandes nêsperas», e bastavam três para fazer um alqueire.
E nele se acharam as Calendas pelos breviários gregos. O mês de Março não calhou na Quaresma, e os meados de Agosto foram em Maio. Julgo que no mês de Outubro ou talvez de Setembro (para não errar, pois é coisa de que pretendo guardar-me com o maior cuidado) calhou a semana que os anais tanto lembram, a que chamamos «semana dos nove dias»; sim, porque de nove ela foi, à custa de irregulares bissextos, já que o sol embicou um pouco para a esquerda, como se fosse debitoribus, a lua variou no curso mais de cinco toesas e viu-se, realmente visto, o firmamento que dizem aplano trepidar ao ponto de a mediana Plêiade abandonar as companheiras, declinar para o Equinócio, e a chamada estrela Espiga largar a Virgem e fugir para a Balança, o que são casos de muito pasmo e matéria tão dura e difícil, que nem os astrólogos sabem meter-lhes o dente; a verdade é que só dentes muito compridos saberiam lá chegar.
Levai em conta que o mundo ia comendo de bom grado as ditas nêsperas porque à vista eram belas, e deliciosas ao gosto; mas tal como Noé, o santo homem (a quem tanto devemos e reconhecidos estamos por ter plantado a vinha de onde nos chega o licor nectárico, delicioso, precioso, celeste, alegre e deífico, chamado briol), se enganou ao bebê-lo porque lhe ignorava a grande virtude e a potência, também os homens e as mulheres desse tempo comiam, e ao que parece com muito prazer, deste grande e formoso fruto.
Frenesi, 1997
trd. apr. Aníbal Fernandes
(lido em 2001; 2023)