Gloriosos Pândegos: Pura Anarquia

PURA ANARQUIA
WOODY ALLEN
(2007)
Errar é humano flutuar é divino
Lutando por conseguir respirar, com a vida a passar-me à frente dos olhos numa série de vinhetas melancólicas, dei comigo, há alguns meses, a sufocar sob o maremoto de lixo postal que jorra todas as manhãs pela fenda da minha porta logo a seguir ao pequeno-almoço. Só a nossa empregada de limpeza wagneriana, Grendel, após ouvir um falsetto abafado vindo de baixo de uma miríade de convites para exposições, intimações para caridades diversas, e jackpots de concursos da treta que supostamente teria ganho, me conseguiu retirar de baixo do monte com a ajuda do nosso aspirador Bugsucker. Enquanto eu colocava cuidadosamente por ordem alfabética as novas chegadas postais na máquina destruidora de documentos, apercebi-me, por entre a profusão de catálogos que impingiam tudo, desde comedouros de aves até entregas mensais de drupa e hesperédio, de um pequeno jornal não solicitado, intitulado Magical Blend. Visando claramente um mercado New Age, os temas dos seus artigos variavam desde o poder dos cristais à cura holística e às vibrações psíquicas, com dicas sobre como obter energia espiritual, amor versus stress, e aonde se dirigir exactamente, e que impressos preencher, a fim de reencarnar. Os anúncios, que pareciam escrupulosamente articulados de modo a prevenir a falta de razoabilidade dos descontentes do filme Bunco Squad, apresentavam «Ferrizadores» Terapêuticos, Estimuladores de Água Turbilhonante, e um produto designado Herbal Grobust concebido para implementar, volumetricamente falando, os cavaillons das senhoras. Havia igualmente abundância de aconselhamento psíquico, provindo de fontes como a «intuitiva espiritual» que valida as suas visões com «um consórcio de anjos intitulado Consórcio Sete», ou uma mulher baptizada de Saleena, qual cobra em mudança da pele, que prometia «equilibrar a sua energia, despertar o seu ADN e atrair a abundância». Naturalmente, no final de todas estas viagens de campo ao centro da alma, impõe-se um pequeno emolumento para cobrir despesas com selos e quaisquer outras em que o guru pudesse ter incorrido numa outra vida. A mais surpreendente persona de todas, porém, tinha de ser a «fundadora e líder divina do Movimento de Ascensão Hathor sobre o Planeta Terra». Conhecida dos seus seguidores como Gabrielle Hathor, e autoproclamada deusa que representa, segundo o seu redactor promocional, «a plenitude da fonte manifestada sob forma humana», este ícone da Costa Oeste diz-nos: «Assiste-se a um acelerar do feedback kármico... A Terra entrou num Inverno espiritual que se prolongará 426 000 anos da Terra.» Preocupada com a dureza de que se pode revestir tão longo Inverno, a senhora fundou um movimento destinado a ensinar os seres a ascender a «dimensões de frequência superior», onde, presumivelmente, podem passear mais e jogar um pouco de golfe.
«Levitação, teletransporte instantâneo, omnisciência, capacidade de materialização e desmaterialização, e assim sucessivamente, tornam-se parte das capacidades normais da pessoa», afirma perante os incautos a arenga bajuladora, proclamando que «a partir destas frequências superiores, o ser ascenso consegue percepcionar as frequências inferiores, ao passo que os que se situam nas frequências mais baixas não têm a capacidade de percepcionar as dimensões mais elevadas.»
Gradiva, 2007
(Ficção)
trd. Jorge Lima
(lido em 2024)