Gloriosos Pândegos: Sempre se é Bom de mais com as Mulheres


SEMPRE SE É BOM DE MAIS COM AS MULHERES
RAYMOND QUENEAU
(1947)

— Deus salve o Rei! — exclamou o contínuo que tinha sido lacaio de um lorde, no Sussex, durante trinta e seis anos, depois o amo desaparecera no naufrágio do Titanic sem deixar herdeiros nem sterlings, para governar o «kas-seul», como se diz das bandas de lá do canal Saint-George. De regresso à terra de seus antepassados célticos, o lacaio exercia este modesto cargo na estação dos Correios que fica à esquina de Sackville Street com Eden Quay. 
— Deus salve o Rei! — repetiu ele, com voz forte, pois era fiel à Coroa de Inglaterra. 
Foi cheio de horror que viu irromperem, pela estação dos Correios, sete indivíduos armados, que imediatamente suspeitou serem republicanos irlandeses em maré de insurreição. 
— Deus salve o Rei! — murmurou ele, pela terceira vez. 
Desta, só murmurar pôde, pois tanto ou tão pouco fizera, com todas as suas manifestações de lealismo, que Corny Kelleher, apressado, lhe injectou uma bala na cachimónia. O contínuo, uma vez morto, vomitou os miolos por um oitavo buraco da cabeça e estatelou-se em cheio, no chão. 
John Mac Cormack registou a execução pelo canto do olho. Não a achava muito necessária, mas não era altura para discussões.
As meninas dos Correios cacarejavam energicamente. Eram uma dezena, verdadeiras inglesas ou ulsterianas, que de maneira nenhuma aprovavam o desenrolar dos acontecimentos. 
— Esvaziem-me esse galinheiro! — berrou Mac Cormack. 
Gallager e Dillon começaram, portanto, quer por sinais quer por palavras, a aconselhar às meninas a desaparecerem em grande velocidade. Umas, porém, queriam ir buscar os seus vater-pruf, outras a mala de mão; evidenciavam um certo desvario na maneira de procederem. 
— Que grandes parvalhonas! — gritou Mac Cormack, do cimo das escadas. — De que é que estão à espera para as pôr na rua? 
Gallager, agarrando na primeira, deu-lhe um açoite no rabo. 
— Mas sejam correctos! — acrescentou Mac Cormack. 
— Nunca mais conseguimos sair daqui — grunhiu Dillon, empurrado por duas donzelas que vinham em sentido contrário. 
— Oh! Mister Dillon! — gemeu uma delas, ao reconhecê-lo. 
E ficou parada. 
— O senhor aqui, Mister Dillon! Um homem de bem! Com uma espingarda na mão, contra o nosso Rei! Em vez de me estar a acabar o meu lindo vestido de renda! 
Dillon, chateadíssimo, coçava a cabeça. Mas Gallager veio em seu socorro e, fazendo cócegas à cliente, debaixo dos braços, gritou-lhe ao ouvido: 
— Vamos, sua pega, gira daqui! 
Ela, ao ouvir estas palavras, desapareceu. 
Mac Cormack trepava já ao segundo andar, seguido por Caffrey e por Calliman. Gallager, mal ele desavarecera, tratou de agarrar noutra rapariga e fez-lhe ressoar o lombo. A rapariga deu um pulo. 
— Correcto! — dizia ele, todo indignado. — Agora correcto! 
E como outro traseiro se lhe oferecesse, aplicou-lhe a manápula em cima com toda a força, o que fez valsar às mil maravilhas uma jovem criatura que havia passado nos seus exames e respondido muito bem a todas as perguntas sobre a geografia mundial e as invenções de Graham Bell. 
— Vá, gira, gira! — berrava Dillon, cheio de coragem perante toda aquela feminilidade. 
A situação começava a ficar um pouco mais clara, e o pessoal feminino activava a marcha, galopando para as saídas, e, destas, para Sakville Street ou Eden Quay. 
Duas jovens telegrafistas estavam à espera de serem postas na rua como as outras donzelas, mas tiveram que se contentar com um vulgar soco na tromba. E assim se foram, desgostosas por tanta boa educação. 
A muitidão, cá fora, assistia, assombrada, a toda esta expulsão. Ouviram-se alguns tiros. Começaram a desfazer-se os grupos. 
— Penso que já se conseguiu fazer um vácuo — notou Dillon, olhando à sua volta. 
Já não havia virgens a chocarem-lhe a vista.

Ambar, 2003
(Gin Tonic)
trd. Luíza Neto Jorge
(lido em 2003)