Gloriosos Pândegos: Uma Conspiração de Estúpidos

UMA CONSPIRAÇÃO DE ESTÚPIDOS
JOHN KENNEDY TOOLE
(1969?, P. 1980)
O boné verde de caçador apertava-lhe o alto da cabeça, que era um balão carnudo. As abas verdes, preenchidas com orelhas enormes, cabelos compridos e a penugem rala dos ouvidos, elevavam-se de ambos os lados, quais sinais de trânsito que indicassem dois sentidos ao mesmo tempo. Os lábios cheios e franzidos salientavam-se sob o bigode negro e farfalhudo e, aos cantos, descaíam em pequenas rugas cheias de censuras e de restos de batatas fritas. A sombra da pala do boné verde, os olhos azuis e amarelos de Ignatius J. Reilly fitavam com sobranceria as outras pessoas que esperavam debaixo do relógio dos armazéns D. H. Holmes, examinando a multidão, em busca de sinais de mau gosto no vestir. Ignatius reparou que várias roupas eram suficientemente novas e caras para poderem considerar-se propriamente ofensas ao bom gosto e à decência. O facto de uma pessoa possuir uma peça de vestuário nova ou cara só reflectia a sua falta de teologia e de geometria; podia até suscitar dúvidas acerca da sua alma.
Ignatius estava vestido com conforto e sensatez. O boné de caçador protegia-lhe as orelhas do frio. As volumosas calças de tweed eram duráveis e permitiam-lhe mover-se com uma invulgar facilidade. As suas pregas e ângulos continham bolsas de ar quente e viciado que confortava Ignatius. A camisa de flanela aos quadrados dispensava o uso de um casaco e o sobretudo protegia a pele exposta de Reilly entre as abas e o colarinho. O conjunto era aceitável à luz de quaisquer padrões teológicos e geométricos, ainda que abstruso, e sugeria uma vida interior rica.
Balançando as ancas à sua maneira arrastada e elefantina, Igaatius projectava ondas de carne que se agitavam debaixo do tweed e da flanela e iam rebentar nos botões e nas costuras. Entretanto, pensava que já estava há muito tempo à espera da mãe. Acima de tudo, pensava no desconforto que começava a sentir. Parecia que todo o seu ser estava prestes a rebentar pelas botas inchadas de camurça e, para comprová-lo, voltou os olhos singulares para os pés. De facto, parecia que tinha os pés inchados. Estava pronto a apontar à mãe aquelas botas inchadas como prova da sua negligência. Levantando a cabeça, reparou que o sol começava a descer sobre o Mississípi, ao fundo de Canal Street. O relógio do Holmes indicava que eram quase cinco horas. Ignatius dava os últimos retoques numa série de acusações cuidadosamente preparadas para conduzir a mãe ao arrependimento ou, pelo menos, à confusão. Muitas vezes era obrigado a pô-la no seu lugar.
Terramar, 2000
(Tudo Ficção)
trd. Maria Filomena Duarte

UMA CONSPIRAÇÃO DE ESTÚPIDOS
(lido em 2022)