Histórias da Loucura Normal: A Colónia Penal


A COLÓNIA PENAL
FRANZ KAFKA
(1914)

- É um aparelho muito curioso, disse o oficial ao explorador, deitando à máquina, que conhecia no entanto muito bem, uma olhadela de admiração. 
Dir-se-ia que só por cortesia o explorador acedera ao convite do comandante, para ir assistir à execução de um soldado condenado por indisciplina e afronta a um superior. Nessa colónia, o interesse por tal operação era, aliás, reduzido. Não se via no vale, uma bacia de areia profunda e envolvida por encostas nuas, para além do oficial e do explorador, senão o condenado, um homem estúpido com uma boca enorme, uma cabeça suja com os cabelos imundos, e um soldado carregando uma pesada corrente de onde prendiam os pés, os tornozelos e o pescoço do forçado. Outras correntes ligavam-nas uma às outras. Contudo, o condenado tinha um ar tão caninamente resignado que dava a impressão de que o poderiam deixar correr em liberdade pelas encostas, para o fazer voltar, à hora da execução, com um simples assobio.
O viajante não sentia pela máquina nenhum interesse real; com um olhar ausente, andava de um lado para o outro, por trás do condenado, enquanto o oficial tratava dos últimos preparativos, ora rastejando sob o aparelho cuja base repousava num fosso, ora trepando a uma escada para controlar o funcionamento das partes superiores. Tratava-se de trabalhos que poderiam ter sido deixados ao cuidado de um mecânico, mas o oficial executava-os com muito zelo, ou porque fosse um partidário particularmente fervoroso da máquina, ou porque, por outras razões, não podia confiá-los a mais ninguém. 
- Agora está tudo a postos, exclamou ele por fim, descendo da escada. 
Estava extraordinariamente cansado, abria a boca toda para respirar e tinha enfiado dois elegantes lenços de mulher entre a nuca e o colarinho. 
- Esses uniformes são demasiado pesados para os trópicos, disse o viajante, em vez de se informar acerca da máquina, como o oficial esperaria. 
- Sem dúvida, disse o oficial enquanto lavava as mãos manchadas de óleo e de gordura num balde colocado ali para esse efeito, mas simbolizam a pátria e nós não queremos perder a pátria. Veja-me só esta máquina, acrescentou, apontando-a enquanto enxugava as mãos numa toalha. Até há pouco era preciso servi-la, agora funciona sozinha. 
O viajante acenou afirmativamente e seguiu o oficial. Este, prevenindo-se contra qualquer contratempo, disse: 
- Podem surgir perturbações; hoje não as vai haver, espero, mas é preciso contar sempre com elas. O sistema deve poder funcionar doze horas seguidas; se surgirem algumas perturbações, serão mínimas e poderemos remediá-las imediatamente. Não deseja sentar-se? Perguntou finalmente, extraindo uma cadeira dum grande monte de cadeiras de verga e oferecendo-a ao viajante. 
Este não pôde recusar. Agora estava sentado à beira de um fosso ao qual deitou uma rápida olhadela. Não era muito profundo. Num dos lados a terra extraída tinha formado um talude, no outro erguia-se a máquina. 
- Não sei, disse o oficial, se o comandante já lhe explicou o mecanismo...

trd. Jorge de Lima Alves
(lido em 2008)