Histórias da Loucura Normal: O Processo


O PROCESSO
FRANZ KAFKA
(1914)

Prisão. Conversa com a Sr.ª Grubach: Depois com a Mnina Burstner

Alguém devia ter caluniado Josef K., visto que uma manhã o prenderam, embora ele não tivesse feito qualquer mal. A cozinheira da sua senhoria, a sr.ª Grubach, que todos os dias, pelas 8 horas da manhã, lhe trazia o pequeno almoço, desta vez não apareceu. Tal coisa jamais acontecera. K. ainda se deixou ficar um instante à espera; entretanto, deitado, com a cabeça reclinada na almofada, observou a velha do prédio em frente que, por sua vez, o contemplava com uma curiosidade fora do vulgar; depois, porém, ao mesmo tempo intrigado e cheio de fome, tocou a campainha. Neste momento bateram à porta e um homem, que K. jamais vira na casa da sr.ª Grubach, entrou no quarto. 
Esbelto, embora de aspecto robusto, o recém-chegado envergava um fato escuro e justo, cheio de rugas e provido de um cinto, diversos botões, bolsos e fivelas. Ainda que não se visse bem qual a finalidade de tudo aquilo, o vestuário do homem parecia singularmente prático. 
— Quem é o senhor? — perguntou K., soerguendo-se imediatamente na cama. O homem, porém, ignorou a pergunta, como se estivesse habituado a não ter de justificar a sua presença, e perguntou por sua vez: 
— O senhor tocou? 
— Sim, para a Ana me trazer o pequeno almoço — respondeu K., tentando em silêncio, num esforço de atenção, deduzir quem poderia ser aquele cavalheiro. Este, porém, não consentindo em se deixar observar demoradamente, voltou-se para a porta e abriu-a um pouco, para dizer a alguém que devia estar mesmo por detrás dela: 
— Ele quer que Ana lhe traga o pequeno almoço! 
No quarto ao lado houve um pequeno riso que, a julgar pelo som, parecia ter sido compartilhado por várias pessoas. Embora o estranho não pudesse ter depreendido do riso nada de que já não estivesse a par, disse a K. em tom de informação:
— É impossível! — 
— Era a primeira vez que tal sucedia — respondeu K., saltando da cama e enfiando ràpidamente as calças. — Sempre quero ver que espécie de gente está aí no quarto ao lado e que contas a sr.ª Grubach me dará do incómodo que me estão a causar. 
Ao mesmo tempo, veio-lhe à ideia que não devia ter falado tão alto, pois, assim, como que reconhecia ao estranho o direito de inspecção, mas na altura não ligou importância a esse facto. No entanto, o estranho interpretou aquela atitude precisamente da mesma maneira, visto que lhe disse: 
— Não quer ficar antes aqui? 
— Não quero nem ficar aqui, nem que me dirija a palavra enquanto o senhor não me disser quem é. 
— Disse-lhe aquilo com boa intenção — retorquiu o estranho, abrindo a porta de moto próprio. 
O quarto contíguo, onde K. entrou mais lentamente do que desejava, tinha, à primeira vista, praticamente o mesmo aspecto que na noite anterior. Era a sala de estar da sr.ª Grubach; hoje, parecia talvez haver nesta sala atulhada de móveis, coberturas, porcelanas e fotografias, mais espaço do que era habitual, embora não fosse possível chegar-se rapidamente a uma conclusão a esse respeito, pois que a principal alteração consistia na presença de um homem que, sentado, junto à janela aberta, se entretinha a ler um livro, do qual levantou a vista ao dar pela entrada de K. 
— Devia ter permanecido no seu quarto! Franz não lho disse? 
— Disse, mas que deseja o senhor? — volveu K., desviando o olhar do seu interlocutor, para observar aquele a quem acabara de ouvir chamar Franz e que se encontrava junto à porta, e voltando novamente a sua atenção para o primeiro. 
Pela janela aberta via-se de novo a velha que, cheia de uma curiosidade verdadeiramente senil, se havia agora colocado numa janela que dava para o quarto onde K. se encontrava, a fim de continuar a observar tudo. 
— Quero que a sr.ª Grubach... — prosseguiu K., ao mesmo tempo que fazia um movimento como se pretendesse livrar-se dos dois homens, que no entanto estavam bem longe dele, e continuar o seu caminho. 
— Não — atalhou o homem que estava perto da janela, levantando-se e atirando o livro para cima da mesinha. 
— Não pode sair; o senhor está preso. 
— Assim parece — disse K. — e por que razão? 
— Não é da nossa incumbência darmos-lhe explicações. Volte para o seu quarto e aguarde. O processo já está a correr; o senhor será informado de tudo na devida altura. Já estou a exceder os limites da minha missão ao falar-lhe assim tão amavelmente; no entanto, espero que pessoa alguma, além de Franz, me ouça; Franz, aliás, contra todos os regulamentos, trata-o com verdadeira amizade. Se daqui para o futuro, o senhor tiver tanta sorte como a que teve com os seus guardas, poderá acalentar esperanças. 

Livros do Brasil
(Dois Mundos)
trd. Gervásio Álvaro
(lido em 2001)