Histórias da Loucura Normal: Um Artista da Fome...


UM ARTISTA DA FOME
Histórias e Fragmentos Reunidos 1922-1924
FRANZ KAFKA
(1922-24)

De repente estavam ali parados, numa fila, dez. Eram quase todos iguais, rostos magros, escuros, escanhoados, com bicos de abutre no lugar do nariz. Não são homens, pensava-se logo, será que existem homens com as bochechas assim tão encovadas, em cujas cavidades a pele pende enrugada.
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Vinte pequenos coveiros, nenhum deles maior do que uma pinha de tamanho médio, formam um grupo autónomo. Têm uma barraca de madeira no bosque da montanha, é ali que descansam depois do seu trabalho duro. Há ali muito fumo, gritos e cantoria, como é normal quando se juntam vinte operários. Como é alegre esta gente! Ninguém lhes paga, ninguém os equipa, ninguém lhes atribuiu uma tarefa. Foram eles que por iniciativa própria escolheram o seu trabalho, são eles que por iniciativa própria o executam. Ainda há algum espírito viril na nossa época. Não é qualquer um que se daria por satisfeito com o trabalho que fazem, talvez nem os satisfaça por completo, mas não abrem mão da decisão que tomaram um dia, e seja como for estão habituados a arrastar as cargas mais pesadas através do mato mais cerrado. A algazarra da festa dura desde a manhã até à meia-noite. 
Uns contam histórias, outros cantam, há ainda uns quantos que fumam o seu cachimbo em silêncio, mas todos vão fazendo circular à volta da mesa a grande garrafa de aguardente. À meia-noite, o chefe levanta-se e bate na mesa, os homens tiram os bonés dos pregos na parede; pegam nas cordas, nas pás e picaretas que estavam no canto da sala, põem-se em fila, sempre dois a dois.
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Onde está o F.? Já não o vejo há muito tempo. 
O F.? Não sabe onde está o F.? O F. está num labirinto, o mais certo é nunca mais sair de lá. 
O F.? O nosso F.? O F. o das barbas? 
Esse mesmo. 
Num labirinto? 
Sim.
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Olhei pela janela, cansado, meio deitado. Um meu conhecido dobrou a esquina da igreja, um comerciante, um velho de barba rala e comprida. Deu por mim, parecia contente por me ver e chamou-me, se eu não queria acompanhá-lo,
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Então ficou decidido, e aterrámos. Estava lua cheia e um ar fresco. Não falávamos, na verdade só porque 
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Durante um passeio de domingo tinha-me afastado da cidade mais do que tencionara fazer. E já que fora até ali, senti-me impelido a ir ainda mais longe. Numa encosta havia um velho carvalho muito curvado mas não muito grande. De alguma forma fez com que me lembrasse que estava afinal na hora de regressar. Já tinha anoitecido há algum tempo. Fiquei de pé à sua frente, acariciei a sua casca dura e li dois nomes que estavam gravados nele. Mas li-os sem os fixar, era como urna teimosia infantil, que, já que não podia ir mais longe, pelo menos me retinha ali, para não me deixar voltar para trás. Às vezes fica-se sob o feitiço de forças assim, que facilmente se consegue quebrar, ma verdade é apenas qualquer coisa como uma gentil brincadeira de um desconhecido, mas era domingo, não tinha nenhum compromisso, já estava cansado e por isso entreguei-me àquilo.
Reparei então que um dos nomes era Jozef e lembrei-me de um amigo de escola que se chamava assim. Na minha lembrança era um miúdo baixinho, talvez o mais baixo da turma, durante alguns anos sentara-se a meu lado no mesmo banco. Era feio, até a nós, que nessa altura dávamos mais valor à força e à habilidade - e ele era dotado de ambas - do que à beleza, nos parecia muito feio.

E-Primatur, 2024
trd. Bruno C. Duarte
(lido em 2025)