Mãe Rússia: O Cabo das Tormentas


O CABO DAS TORMENTAS
NINA BERBEROVA
(1951)

Dacha tinha muitas vezes a impressão de que aquilo que existia no seu íntimo se parecia com o céu estrelado. Nesses momentos olhava para si mesma como se estivesse à beira de um abismo. Ali, não no cérebro, não no cimo, mas no centro, no mais profundo, onde nasce o pensamento, reinavam a calma, o silêncio e a clareza. O desenho das estrelas e o fluxo da Via Láctea formavam uma imagem familiar. É possível que actuassem também aí as leis da matemática e da astronomia: tudo era misteriosamente belo e, quando olhava para si mesma, era o seu equilíbrio que via. Gostava de se deleitar com essa profundidade, que se desenvolvia provavelmente pelas mesmas vias que o mundo à sua volta e que ela própria; aquilo que estava muito alto acima dela estava afinal também no seu próprio sangue, quando atingia essa profundidade onde convergiam todas as reflexões, todas as dúvidas, todas as insónias; era como se estivesse sentada por cima de um precipício, e aos seus pés estivessem as estrelas; e ficava frequentemente a sós com elas durante muito tempo. A consciência de que ninguém saberia aquilo que para ela era o mais importante da vida surpreendia-a e alegrava-a. Via nesse céu estrelado entornado no seu íntimo a sua ligação com o universo e não procurava outras ligações. 
Uma vez, numa escura noite de Agosto, sentada com a cabeça inclinada para trás, olhava para cima e pensava em si mesma, no seu destino, naquilo que era realmente o seu destino porque nem tudo o que acontecia na sua vida fazia parte do seu destino. Sentia sempre a aproximação do destino: tudo nela ficava de sobreaviso, como a preparar-se para receber o golpe - horrível, esmagador, todo-poderoso - da felicidade ou da desgraça. Sentia de repente a necessidade, não de conhecer, não de adivinhar, não de raciocinar, mas apenas de se submeter àquilo que nesses instantes se elevava em si mesma como uma música, um aviso ou um antegosto. E ali corriam por vezes, como uma cadeia pesada mas harmoniosa, as recordações, a mais distante das quais se revelava de repente como a mais próxima. 

Sudoeste, 2007
(Ficção)
trd. António Pescada
(lido em 2021)