Mundos Fabulosos: O Deserto dos Tártaros


O DESERTO DOS TÁRTAROS
DINO BUZZATI
(1940)

Promovido a oficial, Giovanni Drogo deixou a cidade numa manhã de Setembro em direcção à Fortaleza Bastiani, o seu primeiro destino. Acordaram-no era ainda noite e vestiu pela primeira vez a farda de tenente. Quando terminou, olhou-se ao espelho, à luz de um candeeiro a petróleo, mas não sentiu a satisfação que esperava. Havia um grande silêncio na casa, ouviam-se apenas ligeiros rumores, vindos de um quarto próximo; a sua mãe levantava-se para se despedir. Aquele era o dia por que esperava há anos, o início da sua vida verdadeira. Pensava nos dias enfadonhos na Academia Militar, recordou as noites amargas de estudo, a ouvir passar as pessoas lá fora, nas ruas, livres e supostamente felizes; os despertares invernosos nas camaratas geladas, sobre os quais pairavam as ameaças de punição. Recordava o castigo de contar os dias um por um, que pareciam nunca chegar ao fim. Agora era finalmente um oficial, já não tinha de consumir-se com os livros, nem de estremecer à voz do sargento, pois tudo isso era passado. Todas aquelas jornadas, que lhe tinham parecido odiosas, tinham desaparecido para sempre, em meses e anos que nunca mais se repetiriam. Sim, agora era um oficial, teria dinheiro, as mulheres bonitas talvez olhassem para ele, mas, no fundo — apercebeu-se Giovanni Drogo —, o melhor tempo, a juventude, tinha provavelmente terminado. E assim Drogo olhava fixamente para o espelho, vendo um sorriso forçado no seu rosto, o rosto que, em vão, tinha tentado amar. 
Que coisa sem sentido: porque não conseguia sorrir com a devida despreocupação enquanto cumprimentava a mãe? Porque é que nem sequer dava atenção às suas últimas recomendações e apenas se conseguia aperceber do som daquela voz, tão familiar e humano? Porque andava às voltas no quarto com um nervosismo desastrado, sem conseguir encontrar o relógio, o pingalim, o barrete, que no entanto se encontravam nos seus respectivos lugares? Não estava de partida para a guerra! Dezenas de outros tenentes como ele, os seus antigos camaradas, deixavam àquela mesma hora as suas casas paternas por entre risos alegres, como se fossem para uma festa. Por que razão se dirigia à sua mãe apenas com frases vagas de sentido, em vez de o fazer com palavras afectuosas e tranquilizadoras?

Marcador Editora, 2014
trd. Nuno Camarneiro


O DESERTO DOS TÁRTAROS
(trd. Margarida Periquito)
(lido em 2005)