Mundos Fabulosos: O Livro da Areia

O LIVRO DA AREIA
JORGE LUIS BORGES
(1975)
O Outro
O facto ocorreu no mês de fevereiro de 1969, a norte de Boston, em Cambridge. Não o escrevi imediatamente porque o meu primeiro propósito foi esquecê-lo, para não perder a razão. Agora, em 1972, penso que se o escrevo, os outros o lerão como um conto e, com os anos, o será talvez para mim.
Sei que foi quase atroz enquanto durou e mais ainda durante as insones noites que se seguiram. Isto não significa que a narrativa possa comover a terceiros.
Seriam as dez da manhã. Eu estava recostado num banco, diante do rio Charles. A uns quinhentos metros à minha direita havia um alto edifício, cujo nome nunca soube. A água cinzenta arrastava longos pedaços de gelo. Inevitavelmente, o rio levou-me a pensar no tempo. A milenária imagem de Heraclito. Eu tinha dormido bem; a minha aula da tarde anterior lograra, creio, interessar os alunos. Não se via vivalma.
Senti de súbito a impressão (que segundo os psicólogos corresponde aos estados de fadiga) de já ter vivido aquele momento. No outro extremo do meu banco alguém se tinha sentado. Eu teria preferido estar só; mas não quis levantar-me de seguida, para não me mostrar descortês. O outro tinha-se posto a assobiar. Foi então que ocorreu a primeira das muitas atribulações dessa manhã. O que assobiava, o que tentava assobiar (nunca tive grande ouvido), era o motivo crioulo de «La tapera» de Elías Regules. Esse motivo fez-me recuar a um pátio, que já desapareceu, e à memória de Álvaro Melián Lafinur, que morreu há tantos anos. Vieram então as palavras. Eram as do verso inicial. A voz não era a de Álvaro, mas tentava parecer a de Álvaro. Reconheci-a com horror.
Quetzal, 2012
(Obras de Jorge Luis Borges)
trd. António Sabler
(lido em 2023)