Novelas Exemplares: O Banqueiro Ararquista

O BANQUEIRO ANARQUISTA
FERNANDO PESSOA
(1922)
Tínhamos acabado de jantar. Defronte de mim o meu amigo, o banqueiro grande comerciante e açambarcador notável, fumava como quem não pensa. A conversa que fora amortecendo, jazia morta entre nós. Procurei reanimá-la, ao acaso, servindo-me de uma ideia que me passou pela meditação. Voltei-me para ele, sorrindo.
— É verdade: disseram-me há dias que V. em tempos foi anarquista...
— Fui, não: fui e sou. Não mudei a esse respeito. Sou anarquista.
— Essa é boa! V. anarquista! Em que é que V. é anarquista?... Só se V. dá à palavra qualquer sentido diferente...
— Do vulgar? Não; não dou. Emprego a palavra no sentido vulgar.
— Quer V. dizer então, que é anarquista exactamente no mesmo sentido em que são anarquistas esses tipos das organizações operárias? Então entre V. e esses tipos da bomba e dos sindicatos não há diferença nenhuma?
— Diferença, diferença, há... Evidentemente que há diferença. Mas não é a que V. julga. V. duvida talvez que as minhas teorias sociais sejam iguais às deles?...
— Ah, já percebo! V., quanto às teorias, é anarquista; quanto à prática...
— Quanto à prática sou tão anarquista como quanto às teorias. E quanto à prática sou mais, sou muito mais anarquista que esses tipos que V. citou. Toda a minha vida o mostra.
— Hein?!
— Toda a minha vida o mostra, filho. V. é que nunca deu a estas coisas uma atenção lúcida. Por isso lhe parece que estou dizendo uma asneira, ou então que estou brincando consigo.
— Ó homem, eu não percebo nada!... A não ser..., a não ser que V. julgue a sua vida dissolvente e anti-social e dê esse sentido ao anarquismo...
— Já lhe disse que não — isto é, já lhe disse que não dou à palavra anarquismo um sentido diferente do vulgar.
— Está bem... Continuo sem perceber... Ó homem, V. quer-me dizer que nào há diferença entre as suas teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua vida — a prática da sua vida como ela é agora? V. quer que eu acredite que V. tem uma vida exactamente igual à dos tipos que vulgarmente são anarquistas?
— Não; não é isso. O que eu quero dizer é que entre as minhas teorias e a prática da minha vida não há divergência nenhuma, mas uma conformidade absoluta. Lá que não tenho uma vida como a dos tipos dos sindicatos e das bombas — isso é verdade. Mas é a vida deles que está fora do anarquismo, fora dos ideais deles. A minha não. Em mim — sim, em mim, banqueiro, grande comerciante, açambarcador se V. quiser —, em mim a teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e ambas certas. V. comparou-me a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente deles. Sou, mas a diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são anarquistas só na teoria; eu sou-o na teoria e na prática. Eles são anarquistas e estúpidos, eu anarquista e inteligente. Isto é, meu velho, eu é que sou o verdadeiro anarquista...
Antígona, 1995
(lido em 2001)