Novelas Exemplares: O Homem que Corrompeu Hadleyburg

O HOMEM QUE CORROMPEU HADLEYBURG
MARK TWAIN
(1899)
Foi há muitos anos. Hadleyburg era, na região, a cidade mais honesta e íntegra. Mantivera essa reputação imaculada durante três gerações e tinha mais orgulho nela, que em qualquer outra das suas riquezas. Tinha tanto orgulho e tanto empenho em assegurar a sua perpetuação, que começava a ensinar os princípios de uma conduta honesta às crianças no berço, e colocava tais ensinamentos no centro da sua cultura, durante todos os anos dedicados à educação. Da mesma forma, durante esses anos de formação, os jovens eram mantidos longe das tentações, de forma a que a sua honestidade tivesse todas as condições para endurecer e solidificar, tornando-se parte dos seus próprios ossos. As cidades vizinhas tinham inveja desta supremacia honrosa e fingiam escarnecer do orgulho de Hadleyburg, chamando-lhe vaidade; mas, mesmo assim, eram obrigadas a reconhecer que Hadleyburg era uma cidade incorruptível; e, se pressionados, também reconheceriam como inegável que um jovem que reclamasse ser de Hadleyburg não precisava de mais recomendações ao deixar a terra natal à procura de um emprego com responsabilidades.
Mas, por fim, no correr do tempo, Hadleyburg teve o azar de ofender um forasteiro que por lá passou possivelmente sem dar por isso, certamente sem se preocupar, pois Hadleyburg era auto-suficiente e não dava um centavo por forasteiros ou pelas suas opiniões. Contudo, bem poderia ter aberto uma excepção neste caso, porque era um homem amargo e vingativo. Durante um ano, em todas as suas deambulações, nunca se esqueceu desse insulto, dedicando todos os momentos de ócio a magicar como conseguir obter uma reparação. Imaginou muitos planos, e eram todos bons, mas nenhum suficientemente devastador; os mais fracos magoariam grande número de pessoas, mas o que ele pretendia era um plano que abrangesse a cidade inteira, não deixando incólume uma única pessoa. Por último, teve uma ideia feliz e, quando lhe nasceu no cérebro, iluminou-lhe toda a cabeça com uma alegria maligna. De imediato, desenhou um plano, dizendo a si próprio «É o que há a fazer — vou corromper a cidade.»
Seis meses depois foi a Hadleyburg e, cerca das dez da noite, chegou numa caleche à casa do velho caixa do banco. Tirou um saco da caleche, pô-lo no ombro, arrastou-o pelo alpendre da vivenda e bateu à porta. Uma voz de mulher disse «Entre» e ele entrou, e colocando o saco junto à estufa da sala, disse delicadamente à velha senhora sentada junto ao candeeiro, a ler o Missionary Herald: «Mantenha-se sentada, por favor, minha senhora, não quero incomodá-la. Bem — aqui está bem escondido; quase não se dá por ele. Posso falar um instante com o seu marido, minha senhora?»
Não, tinha ido a Brixton e poderia só voltar de madrugada.
«Muito bem, minha senhora, não tem importância. Apenas queria deixar este saco à sua guarda, para ser entregue ao dono legítimo, quando ele for encontrado. Sou um forasteiro; ele não me conhece; estou na cidade apenas de passagem para me desobrigar de um assunto que há muito me preocupa. A minha missão está agora cumprida e parto satisfeito e com algum orgulho e nunca mais me voltará a ver. Há uma folha presa ao saco, onde está tudo explicado. Boa-noite, minha senhora.»
A velha senhora teve medo daquele estranho grande e misterioso e ficou contente por o ver partir. Mas a sua curiosidade fora despertada e foi direita ao saco e trouxe a folha...
Assírio & Alvim, 2003
(O Imaginário)
trd. José Alberto Oliveira
(lido em 2023)