Novelas Exemplares: O Monstro e Outros Contos

O MONSTRO
E OUTROS CONTOS
STEPHEN CRANE
(1898)
O Monstro
O pequeno Jim era, naquele momento, a locomotiva número 36, e percorria o trajecto entre Siracusa e Rochester. Estava catorze minutos atrasado e conduzia a todo o gás. Por conseguinte, quando deu uma curva junto ao canteiro de flores, uma das rodas do seu carrinho-de-mão destruiu uma peónia. A número 36 abrandou de imediato e olhou com ar de culpa para o seu pai que aparava o relvado. O médico estava de costas para o acidente e continuou a caminhar com lentidão, de um lado para o outro, empurrando o cortador de relva.
Jim deixou cair o braço do carrinho. Olhou para o pai e para a flor partida. Por fim, dirigiu se à peónia e tentou estabilizá-la na sua haste, ressuscitada, mas tinha a espinha ferida, pelo que se limitava a pender, flácida, da sua mão. Jim não conseguia repará-la. Olhou novamente para o pai.
Caminhou sobre o relvado, muito devagar, dando pontapés desditosamente na erva. Daí a pouco, o pai aproximou-se com a máquina sibilante, enquanto as ervas, mimosas e frescas, saltavam das lâminas. Em voz baixa, Jim disse:
— Papá!
O médico barbeava o relvado como se fosse o queixo de um padre. Durante toda a estação, trabalhara nele na frescura e paz dos serões, depois da ceia. Mesmo à sombra das cerejeiras, a erva mostrava-se robusta e saudável. Jim ergueu um pouco a voz.
— Papá!
O médico deteve-se, e, tendo cessado o uivo da máquina, podia ouvir-se os tordos nas cerejeiras a tratar dos seus assuntos. Jim tinha as mãos atrás das costas e, por vezes, os seus dedos entrelaçavam-se e desentrelaçavam-se. Mais uma vez, disse:
— Papá!
O lábio viçoso e róseo da criança estava descaído.
O médico desceu o olhar para o filho, impelindo a cabeça para a frente e franzindo o sobrolho, atento.
— O que é, Jimmie?
— Papá! — repetiu a criança, insistente. Então, ergueu o dedo e apontou para o canteiro de flores. — Ali!
O quê? — disse o médico, franzindo mais o sobrolho. — O que é, Jim?
Após um período de silêncio, durante o qual a criança enfrentou porventura um severo tumulto mental, ergueu o dedo e repetiu a sua palavra anterior — «Ali!» O pai respeitara este silêncio com perfeita cortesia. Depois, o seu olhar seguiu cuidadosamente a direcção indicada pelo dedo da criança, mas não conseguiu ver nada que o elucidasse.
— Não percebo o que queres dizer, Jimmie disse ele.
Parecia que a importância de tudo aquilo tirara o vocabulário ao rapaz. Conseguia apenas reiterar: «Ali!»
O médico meditou sobre a situação, mas não conseguia compreendê-la. Por fim, disse:
— Anda, mostra-me.
Juntos, cruzaram o relvado em direcção ao canteiro de flores. A alguns metros da peónia quebrada, Jimmie começou a apressar-se. «Ali!» A palavra vinha quase sem fôlego.
— Onde? — perguntou o médico.
Jimmie bateu com os pés na erva.
— Ali! retorquiu.
Antígona, 2003
trd. David Furtado
(lido em 2006; 2023)