O Ar do Tempo: Baía dos Tigres


BAÍA DOS TIGRES
PEDRO ROSA MENDES
(1999)

Em cada milímetro deste chão está o último instante da minha vida. Posso contemplá-lo a perder de vista. É o motivo por que me transportam sempre de noite. Preservam-me. Não me incomoda. Agora mesmo é de noite e há bastante disso. É de noite sempre que não me encontro quieto. Deixei de estar com o medo porque ele me desertou. Transformou-se num território exterior. Enorme falta de solidariedade: não tenho onde me agarrar, o que pode ser fatal. O chão, a estrada, a savana, o país: o medo é um mapa e a obrigação dele. Não sei quantos dias tem de largura. Estamos a atravessá-lo e é de noite. Atravessar a noite é tudo o que tenho.

Posso também dizer-vos que tenho sono, frio e uma tranquilidade absoluta. Mais tarde falarei de um pequeno caixote com vinho por beber, chá em folha e sal a destemperar. Há também essa cassete preciosa de Marilyn Monroe, com Billie Holiday a espreitar antes de o show encerrar. 
Em Menongue, o chefe do projecto de desminagem da Care no Cuando Cubango mostrou-me um mapa da província em escala muito pequena, ocupando toda uma parede. O mapa, um lajeado de cartas militares coladas umas às outras, estava infestado de alfinetes vermelhos, espetados. Havia também rectângulos da mesma cor, desenhados. E bandeirinhas azuis, quase todas em redor de Menongue e ao longo de uma das margens do rio Cuebe, alguns centímetros a sudeste. 
— Os vermelhos são campos de minas. Não estão cá todos, há muitos mais. Estes são os que nós identificámos. Os rectângulos são locais estratégicos que foram cercados por minas, como os quartéis, os paióis e o aeroporto. Os azuis são as áreas desminadas. Desde Junho já removemos 24 mil explosivos nesta zona. Armazenamo-los num antigo quartel da logística cubana, atrás da missão católica. Depois destruímos, como ainda agora: três mil na sexta, 860 no sábado. E depois é a loucura dos paióis domésticos. Um destes dias, uma gente aí veio chamar-nos porque estavam a reconstruir a casa e, a cavar no quintal, os pedreiros descobriram 82 morteiros. Nunca se sabe quando vão ser precisos... 

Dom Quixote, 2000
(lido em 2001)