O Ar do Tempo: O Meu Século


O MEU SÉCULO
GÜNTER GRASS
(1999)

Como é isso, quando alguém se vê em duplicado na caixinha mágica? Quem está habituado a comer a dois carrilhos não se deve incomodar quando, em ocasiões especiais, encontra o seu Eu bipresente. A surpresa é apenas moderada. Foi-se aprendendo a gerir estas duas formas distintas do Eu não só durante uma rigorosa aprendizagem, mas também com a prática. E, mais tarde, quando já se cumpriram quatro anos no presídio de Rheinbach e só então, após demorado processo, por deliberação da câmara de execução penal se recebe autorização para ligar o aparelho de televisão pessoal, já há muito se tinha consciência da própria existência preservada na dualidade, mas em setenta e quatro, quando ainda se estava em prisão preventiva na cadeia de Köln-Ossendorf e o desejo de ter na cela um aparelho de televisão foi satisfeito sem delongas para o período de duração do campeonato mundial de futebol, o que se ia desenrolando no ecrã foi-me dividindo sob diversos aspectos. 
Não quando os polacos disputaram um jogo fantástico sob uma chuvada torrencial, não quando se ganhou à Austrália e se conseguiu mesmo assim um empate com o Chile, não, aconteceu foi quando a Alemanha jogou contra a Alemanha. De que lado se estava? De que lado estava eu ou eu? Quem se devia aplaudir? Qual das Alemanhas ganhara? Que conflito interior eclodiu dentro de mim, que campos magnéticos me atraíram, quando Sparwasser marcou o golo? 
Por nós? Contra nós? Como todas as manhãs acarretavam comigo para os interrogatórios em Bad Godesberg, a policia criminal podia ter tomado conhecimento de que não me eram de todo estranhas estas e outras formas de divisão íntima. Mas de facto não eram formas de divisão, era antes um comportamento decorrente da divisão da Alemanha em dois Estados, a que se tinha o duplo dever de obedecer. Enquanto pude afirmar-me duplamente como conselheiro de confiança do chanceler e interlocutor em situações solitárias, aguentei esta tensão e não a senti como conflito, até porque não só o chanceler estava satisfeito com o meu trabalho como da parte da Central de Berlim, através de intermediários, me manifestavam igualmente satisfação e eu era elogiado pela minha actividade, ao mais alto nível, pelo camarada Mischa. Tinha-se a certeza de que entre ele, que se considera o «chanceler da paz» e eu, que cumpria a minha missão como «emissário da paz», existia uma harmonia de certo modo produtiva. Foram bons tempos em que as datas importantes da vida do chanceler coincidiam com os encontros do seu conselheiro no que dizia respeito à paz. Cada um se afadigava no cumprimento do seu dever. 
Mas agora tinha a sensação de ser arrastado de um lado para o outro, quando a 22 de Junho, no Estádio Popular de Hamburgo, o apito marcou o início do jogo RDA-RFA, na presença de mais de sessenta mil espectadores. É verdade que na primeira parte do jogo não foram marcados golos, mas quando aos quarenta minutos o pequeno e ágil Müller só por uma unha negra não pôs a Alemanha Federal a ganhar, porque apenas bateu no poste, por pouco não cai em êxtase gritando golo, golo, goooolo! E teria aplaudido na minha cela a vantagem do Estado alemão ocidental, tal como por outro lado estive à beira de uma explosão de alegria quando Lauck ganhou vantagem sobre Overath, e mais tarde deixou para trás o próprio Netzer, embora tenha falhado por pouco a baliza dos alemães federais. 
Entre a cruz e a água benta, éramos presa da indecisão. Até as decisões do árbitro do Uruguai eram acompanhadas de comentários partidários favoráveis ora a uma, ora à outra Alemanha. Senti-me indisciplinado, por assim dizer dividido. No entanto, de manhã, quando o comissário federal me interrogou, consegui perfeitamente não me afastar do texto predeterminado. Tratava-se da minha actividade junto da secção do SPD no Hessen do Sul, situado bastante à esquerda, onde me consideravam como um camarada realmente competente, mas conservador. Não me custou confessar pertencer à facção mais à direita e mais pragmática dos sociais-democratas. Então vi-me confrontado com os acessórios confiscados do meu laboratório de fotografia. Num caso destes, uma pessoa descarta-se, apela para a antiga actividade de fotógrafo profissional, remete para fotografias de férias, o hobby remanescente. Mas depois apareceu a minha máquina de filmar de alto rendimento, a Super-8, e duas cassetes com material cinematográfico particularmente sólido e de alta sensibilidade, próprio, como eles diziam, para «actividades de espionagem». Ora bem, uma prova é que aquilo não era, quando muito um indício. Como consegui não me afastar do texto, voltei tranquilo para a minha cela e fiquei à espera do jogo com satisfação. 
Tanto aqui, como lá: ninguém teria suspeitado que havia em mim um entusiasta do futebol. Até então nem sequer sabia que Jürgen Sparwasser tinha tido êxito como jogador do Magdeburgo. Mas agora assisti a tudo, vi-o ali mesmo, aos 78 minutos, após um passe de Hamann, que avançou a bola com a cabeça, fintar Vogts, aquele tipo teimoso, deixar Höttges para trás e atirar a bola à rede marcando um golo inevitável para Maier. 
1:0 para a Alemanha. Para qual delas? Para a minha ou para a minha? Sim, eu bem gritei na minha cela golo, golo, gooolo!, mas ao mesmo tempo custava-me a derrota da outra Alemanha. Quando Beckenbauer tentava reorganizar o ataque em tentativas repetidas, eu incitava o onze federal. E lamentei o resultado do jogo num postal que escrevi ao meu chanceler, que não caiu por nossa causa — isso foi obra de Nollau e, sobretudo, de Wehner e Genscher —, tal como lhe escrevi pelas festas e a 18 de Dezembro, pelo aniversário dele. Mas não respondeu. Contudo, pode ter-se a certeza de que tambem ele assistiu com sentimentos mistos ao golo de Sparwasser. 

Casa das Letras, 2006
trd. Maria Antonieta Mendonça
(lido em 2025)