O Ar do Tempo: Prosa, Antologia Mínima

PROSA, ANTOLOGIA MÍNIMA
FERNANDO PESSOA
(p. 2020)
Viagem Espiritual
(O doido que viaja para a intuição do Universo)
Os doidos é que têm o cérebro lúcido; confuso e louco é o cérebro dos que não são doidos.
O mistério do universo, a complexidade da vida, o futuro de cada um, tudo isto são problemas que encarados lucidamente devem fazer endoidecer. É encarando-os confusamente que se consegue ficar são de espírito.
Cada pedra do chão é um mistério que o mistério do nosso corpo, misteriosamente andando, faz o mistério de tocar. Ver isto nitidamente é um sintoma de loucura...
A mania das perseguições? Pois não é a luta universal um facto? Pois não somos todos, consciente — ou inconscientemente — inimigos uns dos outros? A mania das perseguições é uma justa compreensão da inimizade natural de tudo quanto não é eu a mim.
A exaltação pura? A intuição ensandecida do mistério da vida subindo ao cérebro em revoadas de inconsciente exultação alegre.
A megalomania? O senso da divina grandeza de nós, por sermos, só por sermos.
A melancolia? A incompreendente sensação do horror e do mistério do mundo e da vida.
Todas as formas de loucura são formas de lúcida visão. São os sãos de espírito que são os cegos ou os confusos de alma.
Endoidecer é caminhar para o mistério, avistá-lo de longe. Endoidecer é começar a viver.
A quem pertence a intuição da vida — do mistério? Aos homens de génio.
E o que são eles? Homens a caminho da loucura, doidos incompletos.
Tinta da China, 2020
(lido em 2023)