O Ar do Tempo: Uma Coisa em Forma de Assim


UMA COISA EM FORMA DE ASSIM
ALEXANDRE O'NEILL
(1985)

Tentava a senhora dizer o que vira, mas não encontrava (ou não tinha) as palavras. Fazíamos os dois conversa. Mais precisamente: troca de monólogos. Através da senhora, recontei a mim mesmo, com pormenorizadas mentiras, a morte desse que fora o meu pai. Pus um tal realismo no relato imaginoso do passamento de «o pai», que a senhora descruzou as pernas e as abriu (diria, escancarou) como se quisesse acolher e sepultar o pobre do morto no seu ventre. Pensei: «A poltrona recebe a senhora, a senhora recebe o meu pai». 
Ela cortou, então, a fatia de tempo que lhe cabia (era a sua vez) para, cruzadas de novo as pernas, me contar como a quinta do Alto Minho se perdera. Disse: 
— A mãe tentou tudo, mas... 
Hipotecas. Vencimentos. Moratórias rogadas e negadas. Malvadez de credores, Ponto final. 
Dentre os salvados da quinta do Alto Minho, um relógio de caixa viera deixar de trabalhar para a casa citadina da senhora. Explicou: 
— Os relógios de pesos são muito difíceis de acertar. 
E prosseguiu: 
— Em pequenita, eu tinha um sonho, um sonho muito esquisito e que se repetia sempre... 
Eu disse: 
— Sim? 
Ela: 
O relógio este que o senhor está a ver batia — claro, isto no sonho — vinte e quatro badaladas. Abria-se então a porta da caixa e saía uma coisa assim. Não lhe sei dizer. Era uma coisa em forma de... Assim. 
A senhora arredondava para mim gestos indefinidos. 
Continuou: 
— Eu acordava sempre nesse momento do sonho, assustada e alagada em suor. Que acha o senhor que poderia ser? 
Tropecei no cliché «alagada em suor». Disse: 
— Não sei. É difícil saber. 
Olhei para o relógio. Imaginei-o sonhado pela adolescente que vivera naquela mulher. Depois desinteressei-me desses não-pensamentos. Construí, então, outra ilha de palavras.
Durante a construção, ela descruzou e escancarou as pernas, mas a sua atitude, bem diferente da que parecera assumir ao princípio, era a de quem queria devolver-me, a todo o custo, esse que fora o meu pai.

Editorial Presença, 1985
(lido em 1999; 2025)