O Eterno Feminino: Debaixo de uma Redoma


DEBAIXO DE UMA REDOMA
ANAÏS NIN
(1944)

A Casa Fluvial 
A torrente da multidão queria arrastar-me. As luzes verdes à esquina das ruas ordenavam-me que atravessasse. O polícia sorria a convidar-me para que caminhasse por entre os pregos de cabeça prateada. Até mesmo as folhas de Outono obedeciam à enxurrada. Eu, porém, apartei-me dela, como um objecto extraviado. Desviei-me e parei ao cimo das escadas que desciam para os Cais. Lá em baixo deslizava o rio. Um rio diferente da torrente de que eu me separara formada por peças dissonantes que se chocavam com aspereza, movidas pela avidez e pelo desejo. 
Corri pelas escadas abaixo em direcção ao molhe — os ruídos da cidade recuavam à medida que eu descia, as folhas murchas refugiavam-se aos cantos dos degraus sob o vento das minhas saias. Ao fundo das escadas deitavam-se os marinheiros naufragados da torrente das ruas, os vagabundos que se tinham afastado da multidão, que se haviam recusado a obedecer. Tal como eu, a uma dada altura do trajecto, separaram-se, e ei-los ali estendidos, náufragos, no sopé das árvores, a dormirem ou a beberem. Tinham abandonado o tempo, as riquezas, o trabalho, a escravidão. Caminhavam e dormiam contra o ritmo do mundo. Renunciavam a ter casa e roupas. Cada um sentado, só, mas não único, pois pareciam ter nascido todos irmãos. Os anos e os ares haviam tornado os seus fatos iguais e o vinho e o vento haviam-lhes dado a mesma pele gasta. A crosta de sujidade, os narizes inchados, os olhos remelosos de lágrimas conferiam-lhes uma aparência semelhante. Tendo recusado seguir a procissão das ruas, procuraram o rio que os embalava. Vinho e água. Todos os dias, defronte do rio, a representarem o ritual do abandono. Contra os nós da rebeldia, o vinho e o rio. Contra o ferro cortante da solidão, vinho e água a lavar tudo ao ritmo de esborratados silêncios. 
Atiravam ao rio os jornais, e isso era a sua oração: serem levados, erguidos, pisados, sem sentirem no homem o osso da dor instalada no esqueleto, mas só o pulsar do fluxo do sangue. Nada de combates, de violências, de despertar.
 Enquanto os vagabundos dormiam, os pescadores, em transe, fingiam estar a pescar, permanecendo ali durante horas, hipnotizados. O rio comunicava com eles através das canas de bambu da aparelhagem de pesca, transmitindo-lhes vibrações. Esquecidas, a fome e as horas. A valsa contínua de luzes e de sombras esvaziava as pessoas de todas as recordações e terrores. Pescadores e marginais, uns e outros cheios do brilho do sol, tal um anestésico que apenas consentia que o pulso batesse, vazio de memórias, como na dança. 

Vega
(Fecunditas)
trd. Maria Ondina Braga
(lido em 1997)