O Eterno Feminino: Manual para Mulheres de Limpeza


MANUAL PARA MULHERES DE LIMPEZA
LUCIA BERLIN
(1977-99; p.2015)

A Lavandaria Self-Service do Angel
Um índio alto e velho, com umas Levi's coçadas e um bonito cinto zuni. O cabelo, branco e comprido, atado com fio cor de framboesa junto ao pescoço. O estranho é que, durante cerca de um ano, estávamos sempre na lavandaria do Angel ao mesmo tempo. Mas não às mesmas horas. Isto é, por vezes eu ia às sete numa segunda-feira, ou às seis e meia da tarde numa sexta-feira, e ele já lá estava. 
Com a Sr.ª Armitage tinha sido diferente, embora também ela fosse velha. Fora em Nova Iorque, na lavandaria San Juan, na 15th Street. Porto-riquenhos. Espuma a transbordar para o cháo. Eu era uma jovem mãe, nessa altura, e lavava fraldas às quintas-feiras de manhã. Ela vivia por cima de mim, no 4-C. Certa vez, na lavandaria, deu-me uma chave, e eu aceitei-a. Disse-me que, se não a visse às quintas-feiras, era porque estaria morta e que fizesse o favor de ir à procura do seu corpo. Era uma coisa horrível de se pedir a alguém; além do mais, isso obrigava-me a ir tratar da minha roupa às quintas-feiras. 
Ela morreu numa segunda-feira, e eu nunca mais voltei à San Juan. O porteiro encontrou-a. Não sei como. 
Durante meses, na lavandaria do Angel, o índio e eu não falámos, embora nos sentássemos juntos em cadeiras de plástico amarelas presas umas às outras, como nos aeroportos. Elas deslizavam no linóleo rasgado e o som arrepiava os dentes.

Ele costumava ficar ali sentado a bebericar Jim Beam, a olhar para as minhas mãos. Não directamente, mas pelo espelho à nossa frente, por cima das máquinas de lavar Speed Queen. Ao início, não me incomodou. Um velho índio a olhar fixamente para as minhas mãos pelo espelho sujo, entre «ENGOMA-SE 1,50$ A DÚZ.» amarelecidos e preces de serenidade em cor de laranja-fluorescente. «DEUS, CONCEDE-ME A SERENIDADE PARA ACEITAR AS COISAS QUE NÃO POSSO MUDAR.» Mas, depois, comecei a perguntar-me se ele teria uma tara com mãos. Deixava-me nervosa, ele a ver-me fumar, a assoar-me, a folhear velhas revistas com muitos anos. Lady Bird Johnson a descer os rápidos. 
Por fim, ele apanhou-me a olhar fixamente para as minhas mãos. Vi-o quase a sorrir por me ter apanhado a olhar fixamente para as minhas próprias mãos. Pela primeira vez, os nossos olhares cruzaram-se no espelho, por baixo do «NÃO SOBRECARREGUE AS MÁQUINAS». 
Havia pânico no meu olhar. Olhei para os meus próprios olhos e, depois, para baixo, para as minhas mãos. Manchas de velhice horríveis, duas cicatrizes. Mãos não índias, nervosas, solitárias. Pude ver crianças e homens e jardins nas minhas mãos.

Random House (Alfaguara), 2019
trd. Rita Canas Mendes
(lido em 2015)