Os Inventores: A Espuma dos Dias

A ESPUMA DOS DIAS
BORIS VIAN
(1947)
Colin acabava de se vestir. Ao sair do banho envolvera-se numa toalha ampla de tecido felpudo, que apenas deixava à mostra as pernas e o tronco. Tirou o vaporizador da prateleira de vidro e pulverizou com óleo fluido e odorífero os cabelos claros. O pente de âmbar repartiu a cabeleira sedosa em compridos fios cor de laranja, semelhantes aos sulcos que o agricultor brincalhão traça com o garfo na compota de damasco. Colin voltou a pousar o pente, muniu-se do corta-unhas e aparou em bisel os cantos das pálpebras baças, para dar mistério ao olhar. Tinha de fazê-lo vezes sem conta porque voltavam logo a crescer. Acendeu o pequeno candeeiro do espelho de aumento e aproximou-se para verificar o estado da epiderme. Alguns pontos-negros despontavam à volta das asas do nariz. Vendo-se tão feios no espelho de aumento esconderam-se rapidamente debaixo da pele, e Colin apagou o candeeiro, satisfeito. Soltou a toalha que lhe cingia os rins e passou uma das pontas entre os dedos dos pés, para absorver os últimos vestígios de humidade. No espelho era possível ver com quem se parecia: o louro que faz o papel de Slim em Hollywood Canteen. Tinha a cara redonda, as orelhas pequenas, o nariz direito, a tez dourada. Sorria muitas vezes com um sorriso de bebé, e por causa disso nascera-lhe à força uma covinha no queixo. Era bastante alto, delgado, com pernas compridas e muito amável. O nome de Colin quase lhe ficava bem. Falava com suavidade às raparigas e alegremente aos rapazes. Estava quase sempre bem-humorado, o resto do tempo dormia.
Esvaziou a água do banho fazendo um buraco no fundo da banheira. O chão da casa de banho, com mosaicos de grés céramo amarelo-claro, era inclinado e orientava a água para um orifício exactamente situado por cima da secretária do inquilino do andar inferior. Que não tardou em mudar a secretária de sítio, sem prevenir Colin. A água caía agora no aparador.
Enfiou os pés em sandálias de couro de cão-do-mar e vestiu um elegante trajo caseiro, calças de veludo com nervuras verde-água-muito-profunda e casaco de durante cor de avelã. Pendurou a toalha no enxugador, pousou o tapete de banho na borda da banheira e polvilhou-o com sal grosso para se desfazer de toda a água que lá tinha. O tapete começou a babar-se, formando cachos de bolinhas saponáceas.
Frenesi, 1997
trd. apr. Aníbal Fernandes
(lido em 2001)