Os Inventores: Ferdydurke

FERDYDURKE
WITOLD GOMBROWICZ
(1937)
Na terça-feira acordei àquela hora mortiça e difusa, quando a noite já se acabou e o dia mal amanheceu. Ao acordar estremunhado, tive o ímpeto de arrancar num táxi para a estação, pois fui invadido pela sensação de que estava de partida - só no minuto seguinte me dei conta, com grande pesar, de que não havia nenhum comboio à minha espera na estação e que nenhuma hora havia ainda soado. Deixei-me ficar deitado na penumbra, o corpo tomado por um temor insuportável que me comprimia a alma, e a alma, por sua vez, comprimia o corpo a ponto de cada uma das suas fibras, por mais diminutas que fossem, se contraírem na expectativa de que nada iria acontecer, nada iria mudar, nada de novo sucederia e, mesmo se tentássemos criar qualquer coisa que fosse, isso daria em nada e nada mais do que isso. Era o pavor de não ser, o terror da não-existência, a ansiedade de não viver, a inquietação da irrealidade, um guincho biológico de todas as células do meu corpo diante da decomposição interior, quando tudo rebenta e se pulveriza. Era o medo da indecência, da mesquinhez e da pusilanimidade, o alvoroço da dispersão, o pânico da fragmentação, a paralisia causada pela violência, quer a interior, quer a que me ameaçava de fora e que - o que não era de somenos - me seguia para todo o lado, nunca se afastando de mim, um passo que fosse, a ponto de poder defini-la como um estado íntimo e intra-molecular de troça e escárnio, um inato desfrute das desavergonhadas partes do meu corpo e das analógicas partes do meu espírito.
7 nós, 2011
trd. Maja Marek e Júlio do Carmo Gomes
(lido em 2018)