Os Inventores: O Arranca Corações


O ARRANCA CORAÇÕES
BORIS VIAN
(1953)

O carreiro abria-se ao longo da falésia. Era ladeado por calaminas em flor e nebulosas um tanto murchas cujas pétalas enegrecidas juncavam o chão. Insectos pontiagudos tinham enchido o chão de mil e um buraquinhos; debaixo dos pés, parecia uma esponja morta de frio. 
Jacquemort caminhava sem grandes pressas e olhava para as calaminas cujo coração vermelho escuro pulsava ao sol. A cada pulsação levantava-se uma nuvem de pólen que depois tombava sobre as folhas agitadas por um lento estremecimento. As abelhas, distraídas, vagueavam. 
Do sopé da falésia erguia-se o marulho suave e rouco das ondas. Detendo-se, Jacquemort debruçou-se sobre o estreito parapeito que o separava do vazio. Lá em baixo, tudo era longínquo, a pique, e a espuma tremia no recôncavo das rochas como uma geleia de Julho. Cheirava a alga assada nas brasas. Tomado de vertigem, Jacquemort ajoelhou-se na erva terrosa do Verão, tocou no chão com as duas mãos espalmadas; deparando, graças a este gesto, com caganitas de cabra de contornos singularmente irregulares, concluiu da presença, entre esses animais, de um bode de Sodoma cuja espécie julgava desaparecida. 
Como já sentia menos medo, ousou debruçar-se novamente sobre a falésia. Grandes lances de rocha vermelha caíam verticalmente na água pouco profunda, da qual não tardavam a sair para darem lugar a uma falésia vermelha, na crista da qual Jacquemort, de joelhos, se debruçava. 
Recifes negros emergiam a espaços, oleados pela ressaca e coroados por um halo de vapor. O Sol corroía a superfície do mar e sujava-a de obscenos «graffitti».

Relógio d'Água, 2011
(Ficções)
trd. Luiza Neto Jorge
(lido em 2023)


O ARRANCA CORAÇÕES
(l. 2001)