Os Inventores: O Outono em Pequim


O OUTONO EM PEQUIM
BORIS VIAN
(1947)

Amadis Dudu seguia sem convicção nenhuma pela estreita viela que representava o atalho mais longo para se chegar à paragem do autocarro 975. Todos os dias tinha de apresentar três bilhetes e meio, pois descia, com o autocarro em andamento, antes da paragem; tacteou o bolso do colete para ver se ainda tinha algum bilhete. Tinha. Viu um pássaro empoleirado num monte de lixo, a bicar em três latas de conserva vazias, o que conseguia reproduzir o início dos Barqueiros do Volga; parou, mas o pássaro deu uma fífia e, furioso, levantou voo, resmungando, entre bico, umas obscenidades à pássaro. Amadis Dudu retomou o caminho, cantando o resto da música; mas deu também uma fífia e começou a praguejar. 
Havia sol, não muito, mas exactamente à sua frente, e a viela, lá ao fundo, brilhava suavemente, porque a calçada estava húmida, embora não conseguisse ver o fundo da rua, que virava duas vezes, primeiro à direita, depois à esquerda. Apareciam mulheres nos patamares com seus grandes desejos flácidos, de roupões abertos sobre uma grande falta de virtude, despejando os caixotes do lixo; e todas se puseram a bater no fundo dos caixotes, em ritmo de tambor, e, como habitualmente, Amadis começou a marcar passo. Por isso é que preferia passar pela viela. Lembrava-lhe o tempo do serviço militar com os Ianques, quando comiam pinâte amanteigado em latas de folha-de-flandres, como as do pássaro, mas maiores. O lixo caía levantando nuvens de pó, o que lhe agradava, porque permitia a visibilidade do sol. Pela sombra na lanterna vermelha do grande seis, onve viviam polícias camuflados (era, na realidade, uma esquadra; e, para dissipar toda e qualquer dúvida, o bordel ao lado ostentava lanterna azul), deviam ser mais ou menos oito horas e vinte e nove. Sobrava-lhe um minuto para chegar à paragem, o que perfazia exactamente sessenta passos por segundo, mas Amadis dava cinco de quatro em quatro segundos: o cálculo, demasiado complicado, dissolveu-se-lhe na cabeça e veio a ser expulso normalmente na urina, fazendo toc ao bater na porcelana. Mas só muito mais tarde.

Círculo de Leitores, 1991
trd, Luiza Neto Jorge
intr. François Caradec


O OUTONO EM PEQUIM
(lido em 1996)