Os Inventores: Ulisses


ULISSES
JAMES JOYCE
(1922)

Pomposo, roliço, Buck Mulligan veio do alto da escada, trazendo uma tigela com espuma de barbear, na qual se cruzavam, em cima, um espelho e uma navalha. O roupão amarelo, solto, sustinha-o por detrás, gentilmente, a brisa suave da manhã. Ergueu a tigela e entoou: 
Introibo ad altare Dei.
Detendo-se, perscrutou até ao fundo a escura escada em caracol e chamou com rudeza: 
— Suba, Kinch! Suba, seu jesuíta cobarde! 
Avançou com solenidade e trepou para a redonda plataforma de tiro. Olhou-os e com gravidade abençoou três vezes a torre, o campo circundante e as montanhas que despertavam. Depois, avistando Stephen Dedalus, inclinou-se para ele e traçou no ar rápidas cruzes, gorgolejando com a garganta e abanando a cabeça. Stephen Dedalus, aborrecido e sonolento, apoiou os braços no cimo do corrimão e olhou com frieza aquele rosto gorgolhante que o abençoava, cavalar no comprimento e o cabelo claro sem tonsura, fibroso e matizado como um pálido carvalho. 
Buck Mulligan contemplou-se um instante, por baixo, no espelho e logo voltou a tapar a tigela com vivacidade. 
— Volta para o quartel! — disse com severidade. 
E, em tom de prédica, acrescentou: 
— Porque isto, ó bem amados, é a Cristina autêntica: corpo e alma e sangue e chagas. Por favor, música lenta. Fechai os olhos, ó cavalheiros. Um momento. Há um pequeno problema com estes glóbulos brancos. Todos em silêncio! 
Perscrutou as alturas, meio de lado, e soltou um longo e lento assobio, como quem chama; depois deteve-se, por uns momentos, em concentrada atenção, os dentes brancos e alinhados a brilhar aqui e ali em pontos de ouro. Crisóstomos. Dois assobios fortes e estridentes responderam através da calmaria. 
— Obrigado, meu caro — gritou com animação. — Isto assim vai ótimo. Corta a corrente, queres? 
Desceu, de um pulo, da plataforma de tiro e olhou gravemente o seu observador, apanhando, com as pernas, as abas soltas do roupão. A rotunda cara sombreada e o queixo, carrancudo e oval, lembravam um prelado, protetor das artes, na Idade Média. Um sorriso divertido aflorou-lhe tranquilamente os lábios. 
— A piada que há nisso! disse alegremente. — Esse seu nome absurdo, em grego antigo! 
Num gesto amistoso, apontou-o com o dedo e dirigiu-se para o parapeito, a rir-se para si próprio. Stephen Dedalus subiu os degraus, acompanhou-o fatigadamente até meio caminho e sentou-se na borda da plataforma de tiro, olhando-o tranquilamente enquanto ele apoiava o espelho no parapeito, mergulhava o pincel na tigela e ensaboava as faces e o pescoço. 
A voz alegre de Buck Mulligan1 continuou: 
— Também o meu nome é absurdo: Malachi Mulligan, dois dáctilos. Mas tem um som helénico, não tem? Saltitante e cheio de sol, como um cabrito. Temos de ir a Atenas. Vem comigo, se eu arrancar umas vinte librinhas à tia? 
Pôs o pincel de lado e, rindo com delícia, gritou: 
— E virá ele? O jesuíta maçador! 
Interrompeu-se e começou a barbear-se cuidadosamente. 
— Diga-me, Mulligan — disse Stephen com serenidade. 
— O quê, meu amor? 
— Por quanto tempo vai Haines ficar nesta torre? 
Buck Mulligan mostrou a face barbeada sobre o ombro esquerdo. 
— Meu Deus, é terrível, não é? — disse com franqueza. — Um saxão tedioso. Ele acha que você não é um cavalheiro. Oh Deus, esses estuporados ingleses! A rebentar de dinheiro e de indigestão. Só porque vem de Oxford. Você, Dedalus, você é que tem o verdadeiro toque de Oxford. Ele não sabe compreendê-lo. Oh, o nome que lhe dou, a si, é o melhor: Kinch, lâmina de faca. 
Barbeou minuciosamente o queixo. 
— Passou a noite a delirar com uma pantera negra — disse Stephen. — Onde é que ele tem o estojo da espingarda? 
— Um lunático lastimável! — disse Mulligan. — E você ficou aterrado? 
— Fiquei — disse Stephen com energia e crescente medo. Aqui, na escuridão, com um homem que não conheço, a delirar e a gemer para consigo próprio, que vai dar um tiro numa pantera negra. Você já salvou pessoas de morrerem afogadas. Mas eu não sou um herói. Se ele aqui ficar, vou-me eu embora. 
Buck Mulligan olhou, de sobrolho franzido, a espuma na navalha. Saltou do seu poleiro e começou a rebuscar sofregamente nos bolsos das calças. 
— Merda! gritou grosseiramente. 
Voltou à plataforma de tiro e, metendo a mão no bolso de cima de Stephen, disse: 
— Emprestai-nos esse trapo do nariz para limpar aminha navalha.

Porto Editora (Livros do Brasil), 2022
(Dois Mundos)
trd. João Palma-Ferreira
(lido em 2024)