Poesia: Poesia de Álvaro de Campos


POESIA DE ÁLVARO DE CAMPOS VOL.I
FERNANDO PESSOA
(1913-1922)

Tão pouco heráldica a vida! 
Tão sem tronos e ouropéis quotidianos! 
Tão de si própria oca, tão do sentir-se despida 
Afogai-me, ó ruído da acção, no som dos vossos oceanos!
 
Sede abençoados, carros, comboios e trens 
Respirar regular de fábricas, motores trementes a atroar 
Com vossa crónica 
Sede abençoados, vós ocultais-me a mim...
 
Vós ocultais o silêncio real e inteiro da Hora 
Vós despis de seu murmúrio o mistério 
Aquele que dentro de mim quase grita, quase, quase chora 
Dorme em vosso embalar férreo,

Levai-me para longe de eu saber que vida é que sinto 
Enchei de banal e de material o meu ouvido vosso 
A vida que eu vivo — ó — é a vida que me minto 
Só tenho aquilo que ...; só quero o que ter não posso.

Planeta de Agostini, 2002
(Os Grandes Clássicos da Literatura Portuguesa)
(lido em 2024)


POESIA DE ÁLVARO DE CAMPOS VOL.II
FERNANDO PESSOA
(1923-1935)

Lisbon Revisited

Não; Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Planeta de Agostini, 2002
(Os Grandes Clássicos da Literatura Portuguesa)
(l. 2024)