Portugal, Portugal...: Alexandra Alpha

ALEXANDRA ALPHA
JOSÉ CARDOSO PIRES
(1987)
O anjo sobrevoou a cidade às 12.00-12.27 (hora solar). Era louro e de asas vermelhas e tinha um belo rosto triangular em nada semelhante ao dos querubins de igreja. Planou em lentas e tranquilas curvas por cima dos arranha-céus e das praias que contornavam a cidade, percorrendo-os com a sua sombra.
Foi escrito: a aparição teve lugar ao sétimo dia de um mês sobre todos radioso e na linha do zénite, sol a prumo. Exacta e inolvidável, exactíssima, pôs em alvoroço as multidões de banhistas que formigavam no areal (aquela era a estação do sol e da festa do corpo) e suspendeu o trânsito nas avenidas da beira-mar, vogando, vogando sempre.
De súbito imobilizou-se, como que numa hesitação. E nesse instante percebeu-se que as asas rubras se tinham rasgado e que delas se levantavam farrapos como labaredas a ondular ao vento, e logo, veloz, cada vez mais veloz, a aparição alada despenhou-se das alturas celestiais, batida pelo sol louco do meio-dia, e veio estatelar-se nuns rochedos do litoral conhecidos por Ponta do Arpoador. Um anjo cego, houve quem declarasse. Outros, os banhistas que o viram passar a caminho dos rochedos fatais, afirmaram que trazia uns olhos brancos de mensageiro suicida. Olhos brancos?
Os jornais recusaram-se a aceitar essa versão apócrifa, essa lenda repentina (na verdade a figura caída dos céus não tinha rosto mas uma massa indecifrável de cabelos de ouro e vermelho sangue). Isso não impediu que alguém lançasse a notícia de que seria verde e não branco esse olhar, verde de facto, emerald green, confirmou à televisão um perito de medicina legal, descrevendo (e mostrando) o verdadeiro retrato da vítima, já então referenciada como um voador de asa-delta, Roberto Waldir Lozano de seu nome, cidadão natural de Água-Santa, vinte e seis anos, casado, e com domicílio na Rua Barão da Torre, Ipanema, Rio de Janeiro, RJ. De acordo com o comunicado da Polícia, a identificação teria sido feita a partir do Clube Internacional de Voo Livre onde estava inscrito o planador vermelho e logo referenciada a ficha cadastral do malogrado indivíduo. Lá estava, lá aparecia nos écrans dos televisores a descrição de Lozano: entre os sinais particulares, assinalava o cabelo louro e os olhos verdes, «olhos verdes, emerald green», insistia a voz do entrevistado, «verde veronèse, na designação francesa», uma cor, bem conhecida dos pintores, que se obtém pela combinação do arseniato com o acetato de cobre. Tratava-se da mais venenosa de todas as cores, começou a explicar o entrevistado, mas nessa altura já o écran era percorrido pela aparição voadora a planar muito serena sobre o Alto Juá, em imagens de acaso filmadas por um turista japonês. E logo depois cenas da recolha do cadáver nos rochedos da Ponta do Arpoador: em primeiro plano, seios soltos, coxas nuas, corpos bronzeados de banhistas curiosas a fazerem círculo à volta dum amontoado confuso de carne e de destroços. Uma foto a seguir, um rosto impessoal a aumentar, aumentar, até co-brir o écran, uma legenda a deslizar, —Ro—ber—to——Wal—dir—ar—qui—vo— e, de frente para os espectadores, o tal olhar que era ao mesmo tempo solar e solitário, a imagem da infância que perdura. Informações da Polícia punham de sobreaviso contra as especulações dos costumados exploradores da crendice popular, tais como a venda de amuletos e de fal-sas relíquias do cadáver, romagens ao local do acidente, etecétera; à noite os rochedos do Arpoador apareciam constelados de velas acesas e de fumos simbólicos a despontarem frente ao mar. Efectivamente, estava-se desde já em presença duma tentativa de manipulação das consciências a que as autoridades e a Igreja não podiam ser indiferentes, comunicou o repórter do telejornal passando o microfone a um sacerdote da Acção Social.
Círculo de Leitores, 1987
(lido em 1997)

ALEXANDRA ALPHA
(l. 2013)