Portugal, Portugal...: A Balada da Praia dos Cães

BALADA DA PRAIA DOS CÃES
JOSÉ CARDOSO PIRES
(1982)
A Investigação
Presente nos autos e em figura própria Elias Santana, chefe de brigada. Indivíduo de fraca compleição física, palidez acentuada, 1 metro e 73 de altura; olhos salientes (exoftálmicos) denotando um avançado estado de miopia, cor de pele e outros sinais reveladores de perturbações digestivas, provavelmente gastrite crónica. No aspecto exterior nada de particular a registar como circulante do mundo em geral a não ser talvez a unha do dedo mínimo que é crescida e envernizada, unha de guitarrista ou de mágico vidente, e que faz realçar o anel de brasão exposto no mesmo dedo. Veste habitualmente casaco de xadrez, calça lisa e gravata de luto (para os devidos efeitos) com alfinete de pérola adormecida, caranguejo de ponteiros fluorescentes, marca Longines, que usa no bolso superior do casaco com amarra de ouro presa à lapela; farolins de lentes grossas, à toupeira, com comportamento mortiço; carece de capilares no couro cabeludo, o crânio é pautado por cabelinhos poucos mas poupados, e distribuídos de orelha a orelha.
[Elias Cabral Santana, folha corrida: n. em Lisboa 1909, na freguesia da Sé, filho dum juiz de comarca. Estudos liceais no Colégio de São Tiago Apóstolo, que abandona por morte dos pais, tendo ficado aos cuidados da irmã até à maioridade. Jogador nocturno e cantor lírico em academias de bairro. Após um período de internamento no Sanatório da Flamenga, Loures, é admitido corno estagiário na Polícia Judiciária (10-7-1934) por despacho do então director, juiz Bravo. À margem é conhecido por Covas ou Chefe Covas decerto porque, prestando serviço na Secção de Homicídios há mais de vinte anos, tem passado a vida a desenterrar mortes trabalhadas e a distribuir assassinos pelos vários jazigos gradeados que são as penitenciárias do país. Com louvor e dedicação, também consta da sua folha de serviços. Com a reserva e a sem paixão que competem à sua especialidade e tanto assim que jamais pronuncia a palavra Defunto, Finado ou Falecido a propósito do cadáver que lhe é confiado, preferindo tratá-lo por De Cujus que sempre é um termo de meretíssimo juiz. Elias Santana, o Covas, costuma responder que «anda aos calados» quando porventura o encontram em serviço a horas e em locais inesperados e por aqui já se pode avaliar a discrição e a naturalidade com que encara os mortos e os seus matadores, nada mais tendo a declarar.]
Assim sendo, e na sequência dos factos ocorridos no dia três de abril do corrente ano de mil novecentos e sessenta, passadas que foram setenta e poucas horas sobre o achamento do cadáver dum desconhecido na Praia do Mastro, a cinquenta quilómetros de Lisboa, o mencionado Elias Chefe, por sobrenome Covas, medita sentado na cama com o jornal da véspera aberto na página do crime.
Está em pijama de cetim. São sete da manhã no seu domicílio à Travessa da Sé, terceiro andar alto com vista para o Tejo. O quarto é um compartimento interior com postigo oval a dar para a escada. Cómoda bojuda, matriarcal. Mesinha-de cabeceira em mogno, tampo de mármore, escarrador de porcelana colorida. Lençóis bordados com monogramas das iniciais MT entrelaçadas.
RBA, 1994
(Narrativa Actual)
(lido em 2019)

BALADA DA PRAIA DOS CÃES
(l. 1994)