Portugal, Portugal...: Ilhíada

ILHÍADA
ALBERTO PIMENTA
(2021)
musa, dá-me só uma
dali do fundo da rua, no Verão era um pulo até
às Fontainhas, junto ao rio; mas com chuva todo
o cuidado era pouco com a água e com a lama,
escorregadia como toda a lama, mas na ladeira
era sempre muito pior: algumas vendedeiras, já
de volta da sua volta, canastra com as sobras e
ervas esmagadas no fundo, funcho ou alecrim,
e outros cheiros, estavam perto com o carrego à
cabeça, e tinham caído com tudo por ali abaixo
de escantilhão, elas e o resto das verduras todas;
mas sem chuva o Cipriano descia sempre da ilha,
levava na cabeça o seu chapéu de copa de palha,
os óculos e a bengala, indispensável para descer;
e depois, já sentado na orla de pedra em redor do
sicómoro, dito plátano do Oriente, bem instalado
para as narrações a que os putos da ilha acorriam
em chusma, diga-se que televisão ainda não havia,
queriam sempre ouvir mais uma e outra vez, e era
assim! os muito pequenos da ilha iam para o colo
do Cipriano; os mais velhinhos, aí uns onze, doze
anos, só empurravam, para chegar perto da fonte,
e pediam esta ou aquela, e não era como o Duque,
não da Ribeira mas de Mântua, que fosse esta ou
fosse aquela todas serviam; aqui os gostos eram
bem claros! era a "Dulce e Meia" a fazer maioria,
e o Cipriano anuía, não com desprazer, à ruidosa
maioria; quantas vezes falara já desse invisível ser
com capacidade não só de enfrentar os malfeitores
como até de assaltar e desviar grandes navios!
a invisibilidade, como no sexo, fazia aumentar o
espaço da imaginação, mas não se diria que fosse
isso só! bem, começou como sempre, senão eram
gritos a exigir: não é assim, não é assim! — pois,
eu conheci a Dulce, uma rapariga que não tinha nada
que a distinguisse das outras, só maneira de dizer,
meninos, porque o tempo e a experiência ensinam
que não há duas raparigas iguais... assim como
para elas não há dois de nós iguais, não é, Bruno?
ora a Dulce mal chegava ao sovaco dessa irmã: alta
mesmo, e então a gente chamava, como vocês já sabem,
Dulce e Meia. conta, conta! — vocês conhecem,
então, a Dulce e Meia trabalhava numa espécie
de call-center, ninguém a tinha visto nunca,
só mesmo aquela voz que a gente levava para todo
o lado, era como se ela estivesse sempre connosco,
e atrás dela eram lobisomens e bruxas muito más!
mas ela estava protegida, deles e doutros invisíveis.
— estava protegida como, s'or Cipriano? falou o Beto.
é que ela, quando preciso, também se transformava
em lobismulher. — e como conseguia? — olha, Beto,
todas elas conseguem, é preciso ter muito cuidado...
— e comem? — só até ao pescoço, a cabeça guardam!
Edições do Saguão, 2021
(lido em 2022)