Portugal, Portugal...: Manual dos Inquisidores

O MANUAL DOS INQUISIDORES
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
(1996)
RELATO
E ao entrar no tribunal em Lisboa era na quinta que pensava. Não na quinta de agora com as estátuas do jardim quebradas, a piscina vazia, o capim que devorava os canis e destroçara os canteiros, a grande casa destelhada onde chovia no piano com o retrato autografado da rainha, na mesa de xadrez a que faltavam peças, nos rasgões da alcatifa e na cama de alumínio que armei na cozinha, encostada ao fogão, para um sono afligido toda a noite pelas gargalhadas dos corvos
ao entrar no tribunal em Lisboa não pensava na quinta de agora mas na casa e na quinta do tempo do meu pai quando Setúbal (uma cidade tão insignificante como uma aldeia de província, de luzes a dançarem em torno do coreto numa vibração de trevas, laceradas pelo desespero dos cães)
ainda não chegara ao portão e aos salgueiros do muro e descia rio adentro num atropelo de traineiras e tabernas, Setúbal onde a governanta me levava às compras aos domingos de manhã arrastando-me pelo cotovelo sob o alvoroço dos pombos
a casa e a quinta do tempo do meu pai de escadaria ladeada de anjos de granito e dos jacintos que cresciam ao longo das paredes, uma agitação de criadas nos
corredores do mesmo modo que as pessoas se agitavam no vestíbulo do tribunal
(era Julho e as árvores da rua Marquês da Fronteira torciam-se ao sol contra as fachadas)
em cachos que se agrupavam e desfaziam em torno dos elevadores numa pressa ansiosa e nisto o meu advogado no meio das testemunhas e dos réus e dos oficiais de diligências a agarrar-me a camisola e a apontar-me os degraus
— Por aqui senhor engenheiro os divórcios por aqui
e eu indiferente ao tribunal, indiferente a ele, a lembrar-me daquele Julho antigo em Palmela
(devia ter quinze ou dezasseis anos porque construíam a garagem nova junto às faias, o tractor girava a seguir à horta e as pás de ferro do moinho chiavam no calor)
em que ouvi cochichos e passos e murmúrios na capela e não eram galinhas não eram rolas não eram gralhas era gente, talvez os ciganos de Azeitão a roubarem a santa e os castiçais de talha
(mulheres de saias negras, homens soprando cafeteiras ao lume, magras mulas tristíssimas)
e peguei numa das bengalas do vaso de louça da entrada e atravessei a trote a sala de jantar
— Por aqui senhor engenheiro os divórcios por aqui
com o lustre pingando sombras de vidro na toalha, saltei o canteiro de estrelícias, saltei as petúnias, a porta da capela encontrava-se aberta, os círios oscilavam nos arcos e não dei com os ciganos de Azeitão
(mulheres de saias negras, homens soprando cafeteiras ao lume, magras mulas tristíssimas)
dei com a cozinheira estendida de costas no altar, de roupa em desordem e avental ao pescoço, e o meu pai escarlate, de cigarrilha na boca e chapéu na cabeça, segurando-lhe as ancas a olhar para mim sem surpresa nem zanga, e nesse domingo depois de responder aos gritos ao latim do padre, à frente do caseiro, da governanta, das criadas, o meu pai a acender cigarrilhas durante a comunhão
Planeta d'Agostini, 2000
(Os Grandes Escritores Portugueses Actuais)
(lido em 2000)