Portugal, Portugal...: O Anjo Ancorado

O ANJO ANCORADO
JOSÉ CARDOSO PIRES
(1958)
Num dia de Abril de 1957, pela hora da tarde, apareceu em certa aldeola da costa um automóvel aberto, rápido como o pensamento.
Já alguém tinha dado por ele quando ainda vinha à distância, roncando pela estrada fora. De longe, como era vermelho, vermelho-vivo, lembrava uma chama de rastilho a romper no asfalto por entre mar e cabeços.
«Que terra é aquela?», perguntou uma rapariga que vinha lá dentro.
«São Qualquer-Coisa», respondeu-lhe o homem que a acompanhava. «São Rafael, parece-me.»
Era pessoa dos seus quarenta anos ou nem isso. Guiava de largo, cabeça para trás, mão pousada no volante. À parte o cabelo ralo e o olhar suave, todo ele, pele e gestos, tinha um aspecto terra a terra: dedos ossudos, pulsos chatos, unhas rasas, cor e modos de camponês — melhor: de descendente de camponês. Vinha de camisolão grosso, cachimbo nos dentes.
Este ar de terra a terra é fácil de perceber-se nalguns infantes da lavoura que gastam a maior parte da vida nas grandes capitais. Nesses, as falas provincianas e o tom com que se dirigem aos criados são coisas cultivadas, uma espécie de marca de estirpe para os diferençar do resto dos mortais que não têm terras nem passado para lá da cidade. São outra gente; gozam a paz da fortuna e das famílias, bebem vinho tinto nos bares do Guincho ou de Cascais sem que alguém lhes leve a mal. Julgam, em suma, a cidade à medida da aldeia. E passeiam-se nela.
«Como os velhos reis», costumava dizer o homem do carro vermelho...
Arcádia, 1964
(Obras de José Cardoso Pires)

O ANJO ANCORADO
(lido em 1998)