Portugal, Portugal...: O Burro-em-Pé

O BURRO-EM-PÉ
JOSÉ CARDOSO PIRES
(1979)
Ia um trabalhador a caminho de casa quando à porta duma taberna lhe apareceu o sapateiro da rua a chamá-lo.
«Vizinho, eh, vizinho. Pode mandar buscar as suas botas que as acabei agora mesmo.»
«É já,» disse o trabalhador, que ficou logo bem-disposto com a novidade. «Mas primeiro havemos de beber um copo para festejar.»
«Assente. Mande servir que eu vou num instante à loja buscar a encomenda.»
As botas não eram para ele, trabalhador. Tinha-as mandado fazer de bom cabedal, de macia capa de vaca, solas de pneu de automóvel e valentes costuras, com destino a um enteado que vivia na sua companhia.
«Cortei-as,» explicou o sapateiro, «com a mesmíssima facilidade com que cortei o papel do molde. Nem um nervo, nem uma dobra maltratada. Não encontrei debaixo da faca mínima coisa que se dissesse: é desperdício, desfeia desfeia a pele. E, vizinho, não há nada como as dobras e os olhais do couro para desfear uma peça. Não só a desfeiam como a tornam mais fraca, que é muitíssimo pior. À nossa saúde, vizinho.»
O trabalhador levou as botas novas para casa e mostrou-as à mulher.
«Homem,» disse ela, com ar preocupado. «Ou me engano muito ou fizeste grosso erro nas medidas. Como queres tu que a criança se mexa com umas sapatorras deste tamanho?»
«O moço está na idade de crescer, foi de propósito. Em menos de um ano ficam-lhe justas.»
Estavam eles a apreciar as botas chegou o hóspede da casa. Olhou e deu também o seu parecer:
«São grandes, são. Mas antes folgadas do que à justa. A comadre meta-lhe umas palmilhas de cartão e verá como ficam boas. Olá, forros de pele?»
«Forros de pele, pois então,» confirmou o trabalhador; sorria para a mulher e para o hóspede, orgulhoso da sua compra...
Dom Quixote, 1999
(José Cardoso Pires)
(lido em 2008)