Portugal, Portugal...: O Delfim

O DELFIM
JOSÉ CARDOSO PIRES
(1968)
Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade,
fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.
Repare-se que tenho a mão direita pousada num livro antigo — Monografia do Termo da Gafeira — ou seja, que tenho a mão sobre a palavra veneranda de certo abade que, entre mil setecentos e noventa, mil oitocentos e um, decifrou o passado deste território. É nele que penso também — nisto tudo, na aldeia, nos montes em redor e nos seres que a habitam e que formigam lá em baixo, por entre casas, quelhas e penedos, à distância de um primeiro andar. Sou um visitante de pé (e em corpo inteiro, como numa fotografia de álbum), um Autor apoiado na lição do mestre. Lavatório de ferro à esquerda, mesa de trabalho à direita. Em fundo, a porta com a espingarda e a cartucheira penduradas no cabide. Pormenor importante: enfrento a janela de guilhotina que dá para o único café da povoação, do outro lado da rua, e, mais para diante, vejo o largo, a estrada de asfalto e um horizonte de pinhais dominado por uma coroa de nuvens: a lagoa. Algures, no corredor, a dona da casa chama pela criadita.
Temos, pois, o Autor instalado numa janela de pensão de caçadores. Sente vida por baixo e à volta dele, sim, pode senti-la, mas, por enquanto, fixa-se unicamente, e com intenção, no tal sopro de nuvens que é a lagoa. Não a vê dali, bem o sabe, porque fica no vale, para lá dos montes, secreta e indiferente. No entanto, aprendeu a assinalá-la por aquele halo derramado à flor das árvores e diz: lá está ela, a respirar. Depois, se quisesse escrever, passaria apenas o dedo na capa encarquilhada do livro que o acompanha (ou numa tábua de relíquia, ou numa pedra) e sulcaria o pó com esta palavra: Delfim.
Moraes Ed, 1968

O DELFIM
(lido em 1996; 2002)