Portugal, Portugal...: O Hóspede de Job

O HÓSPEDE DE JOB
JOSÉ CARDOSO PIRES
(1963)
Espalmada em córregos secos, numa terra de barro e areão que encarquilha ao sol; rasgados os campos pela estrada longa de asfalto ou por baforadas ronceiras de comboio — assim, no despontar da charneca, fica Cercal Novo: um clarim, uma igreja abraçada ao quartel, meia dúzia de casas ao correr da estrada, e principalmente um silvo, um delicado traço de fumo a alastrar sobre a planície:
«Uuuuu...»
«Comboio de Évora», dizem os militares nas casernas.
«Comboio de Évora», diz-se na cadeia, na enfermaria e na Casa do Soldado. «Comboio de Évora, comboio dos correcços e de quem vai de licença.»
E ao balcão das vendas alguém canta:
Lá vai o comboio, lá vai
Lá vai ele a assobiar...
Estirado sobre um desses balcões, o cabo ferrador Três-Dezasseis assenta uma palmada no tampo de zinco:
«Chó!»
O grito varou de alto a baixo os dois recrutas que cantavam ao fundo da loja. Apanhou-os muito unidos, com o braço pelos ombros um do outro, e cortou-lhes a voz. Estavam sentados num banco comprido, como duas crianças amigas ou como os casais de namorados ao domingo nos jardins.
Agora os dois soldaditos molham os lábios (à imagem de certos animais quando esperam o ataque que os há-de devorar), mudos e atentos, e irremediavelmente presos àquele vulto que se debate contra o vinho para conseguir endireitar-se. Não se mexem nem dão sinal. Assistem às arrancadas, às indecisões, às teimosias do cabo, e tudo isso — movimentos desmantelados, arrancadas, indecisões — pode ainda fazer-lhes lembrar os comboios nas suas manobras de estação, saindo e entrando nos apeadeiros cheios de malas e de gente intrigada.
Também o tendeiro, do outro lado do balcão, não teve um gesto sequer. Não pensaria por certo em viagens e em comboios — estava, e está, como sempre: sentado numa indiferença de pedra, olhando a direito como se entre a sua pessoa e a porta que dá para a estrada não houvesse ninguém, positivamente ninguém. Nem mesmo esse militar em desespero de vinho que, a dois palmos dele, roça a cara pelo balcão, estende as unhas, os cotovelos, e é um mostrengo diante de dois recrutas assustados.
«Chô!»
Círculo de Leitores
(lido em 1998; 2021)