Realismos Mágicos: Ninguém Escreve ao Coronel


NINGUÉM ESCREVE AO CORONEL
(1961)

O coronel abriu a lata de café e viu que restava apenas uma colherzinha de pó. Tirou a panela do lume, deitou ao chão de terra metade da água e raspou à faca o fundo da lata até deitar na panela os grãos finais do pó entremeados com raspas de ferrugem. 
Sentado junto ao fogão, em atitude de confiada e inocente expectatica enquanto o café não fervia, o coronel sentiu como se das tripas lhe brotassem cogumelos e lírios malignos. Era Outubro. Manhã difícil de vencer, esta, mesmo para o homem que ele era, sobrevivente de tantas manhãs. Havia cinquenta e seis anos que terminara a última guerra civil, e o coronel nada fazia além de esperar. Outubro era uma das raras coisas que chegavam. 
Quando entrou no quarto trazendo o café, a sua mulher abriu o mosquiteiro da cama. Sofrera durante a noite uma crise de asma e atravessava agora um estado de modorra. Contudo, ergueu o busto para pegar na chávena. 
—E você — disse. 
— Já tomei — mentiu o coronel —, ainda havia dois dedos. 
Começaram a tanger sinos a finados. 
O coronel esquecera o enterro. Enquanto a mulher tomava café, soltou a ponta da rede e enrolou-a na outra extremidade, atrás da porta. A mulher lembrou o morto.
— Nasceu em 1922 — disse. — Exactamente um mês depois do nosso filho. Dia 7 de Abril. 
Continuou a sorver o café nas pausas da respiração difícil. Era uma mulher feita de cartilagens brancas, cobrindo-lhe a espinha arqueada e inflexível. Por causa das perturbações respiratórias, era obrigada a fazer perguntas em tom afirmativo. Quando acabou o café, ainda pensava no morto. 
— Deve ser horrível estar debaixo da terra em Outubro — disse.
O marido não prestava atenção. Abria a janela. Outubro instalara-se no quintal. Contemplando a vegetação que rebentava em verdes intensos e os minúsculos montes de terra revolvidos pelas minhocas, o coronel sentiu de novo o mês aziago nas tripas. 
— Estou a sentir água nos ossos — disse. 
— É o Inverno replicou a mulher. — Desde que começaram as chuvas que lhe estou a dizer que durma de meias. 
— Vai fazer uma semana que durmo de meias.
Chovia manso, sem parar. O coronel pensou em voltar para a rede enrolada no cobertor de lã, mas a insistência do repicar de bronzes lembrava-lhe o enterro. 
— É Outubro murmurou ao sair da janela. Só então pensou no galo amarrado ao pé da cama. Era um galo de briga. 
Depois de levar a chávena para a cozinha, foi à sala dar corda ao relógio de pêndulo montado em madeira lavrada. Ao contrário do quarto, acanhado para a respiração da asmática, a sala era ampla, com quatro cadeiras de balanço em redor da mesa baixa, com toalha e um gato de gesso. Na parede oposta à do relógio, um retrato de mulher numa barca cheia de rosas, entre véus e anjinhos. 
Eram sete e vinte quando acabou de dar corda ao relógio. Levou o galo à cozinha, amarrou-o ao pé do fogão, mudou a água da lata e pôs ao lado um punhado de milho. Os garotos entraram pela cerca rebentada. Sentaram-se em volta do galo, a contemplá-lo em silêncio. 
— Parem de olhar — disse o coronel. — Os galos gastam-se quando a gente olha muito para eles.

Europa-América
(Século XX)
trd. V.W.

NINGUÉM ESCREVE AO CORONEL
(trd. José Colaço Barreiros)
(lido em 2000)