Realismos Mágicos: O Amor em Tempos de Cólera


O AMOR NOS TEMPOS DE CÓLERA
GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
(1985)

Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino sentiu-o assim que entrou na casa, ainda mergulhada em penumbra, onde fora de urgência para tratar um caso que, para ele, já tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano, Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e o seu mais tolerante adversário de xadrez, tinha-se posto a salvo das inquietações da memória com um defumador de cianeto de ouro. 
Encontrou o cadáver coberto com uma manta, no catre de campanha onde sempre dormira, ao lado de um tamborete onde estava a pequena tina que lhe tinha servido para vaporizar o veneno. No chão, preso aos pés do catre, o corpo estendido de um Grand-Danois negro de peito alvo e, junto dele, as muletas. O quarto, sufocante e caótico, que servia ao mesmo tempo de quarto de dormir e de laboratório, mal começava a iluminar-se com o resplendor do amanhecer na janela aberta, mas bastava essa luz para reconhecer imediatamente a autoridade da morte. As outras janelas, bem como qualquer fresta da divisão, estavam amordaçadas com trapos ou seladas com cartões negros, e isso aumentava a sua densidade opressiva. Havia um escaparate atulhado de frascos e boiões sem rótulos e duas tinas de peltre meio escacarado sob uma lâmpada vulgar coberta de papel vermelho. A terceira tina, a do líquido fixador, era a que estava ao lado do cadáver. Havia revistas e jornais velhos por toda a parte, pilhas de negativos em placas de vidro, móveis partidos, mas encontrava-se tudo preservado do pó por mãos diligentes. Ainda que o ar da janela tivesse purificado o recinto, ficava, porém, para quem o soubesse identificar, o cheiro morno a amores infelizes das amêndoas amargas. O doutor Juvenal Urbino tinha pensado mais de uma vez, sem intenção premonitória, que aquele não era um lugar propício para morrer na graça de Deus. Mas, com o tempo, acabou por supor que a sua desordem obedecia talvez a uma determinação cifrada da Divina Providência. 
Tinham-se-lhe adiantado um comissário da Polícia e um estudante de Medicina muito jovem que fazia a sua prática forense no dispensário municipal, e foram eles que arejaram a sala e cobriram o cadáver enquanto o doutor Urbino não chegava. Ambos o cumprimentaram com uma solenidade que, desta feita, tinha mais de condolência que de veneração, pois ninguém ignorava o grau da sua amizade com Jeremiah de Saint-Amour. O eminente professor apertou a mão aos dois, como desde sempre o fazia a cada um dos seus alunos antes de iniciar a aula diária de Clínica Geral, e logo segurou na orla da manta com a ponta do indicador e do polegar, como se fosse uma flor, destapando o cadáver, palmo a palmo, com uma parcimónia sacramental. Estava completamente nu, hirto e retorcido, com os olhos abertos, o corpo azul, e como se tivesse mais cinquenta anos que na noite anterior. Tinha as pupilas diáfanas, a barba e o cabelo amarelecidos e o ventre atravessado por uma cicatriz antiga, cosida com nós de embrulho. O tronco e os braços tinham a envergadura dos de um remador, devido ao esforço com as muletas, mas as pernas inermes pareciam as de um órfão. O doutor Juvenal Urbino contemplou-o durante um instante com o coração apertado como raras vezes naqueles seus longos anos de luta estéril contra a morte.

Dom Quixote, 1992
(Ficção Universal)
trd. Margarida Santiago
(lido em 1997)